Capitulo doze

1K 37 1
                                    

Eu não sabia quanto tempo de peça havia se passado, eu só sabia que ela já havia começado. E também não tinha muita certeza de que eu estava sentada, porque minha cabeça de repente pareceu tonta e eu sentia como se estivesse flutuando. Sentia como se as pessoas ao meu redor não existissem, como se minha mente estivesse me enganando. E me sentia enjoada. Estava tentando ao máximo não olhar para ele, mas meus olhos idiotas insistiam em rolar nas órbitas, me dando o desprazer de vê-los lado a lado, e também de ver aquele cabelo perfeitamente penteado e a gravata escura segurando firme a gola da sua camisa xadrez vermelha enquanto o nariz delicadamente desenhado segurava os óculos acima dele. Alguém deu um grito em cima do palco e eu me assustei. Minha atenção voltou-se inteiramente ao cara com o falso cavanhaque, e minha mente disse palavras nada bonitas para ele. Me afundei na cadeira, agora o agradecendo por mudar meu foco. Alguns minutos depois, eu estava olhando para Harry de novo.
Isso se repetiu por várias e várias vezes durante o espetáculo, que de espetacular não tinha nada. Não tinha entendido até agora sobre o que se tratava a peça, e nem sabia quem era o filho do chefe do meu pai. Que, aliás, estava quase dormindo ao meu lado, ao contrário de minha mãe, que realmente parecia entretida. Passei as mãos com força sobre meus olhos. Já tinha visto Harry sorrir, dizer alguma coisa a ela, escutar alguma coisa dela, coçar os olhos, coçar o nariz, limpar os óculos na camisa, cruzar as pernas, descruzar as pernas, respirar, piscar, umedecer os lábios com a língua exatamente do jeito que ele estava fazendo agora... Oh, céus... Pisquei com força e apoiei o cotovelo esquerdo no braço da cadeira, descansando a cabeça na mão de forma com que meus dedos bloqueassem minha visão lateral. Isso, assim estava melhor. E ficou melhor até me dar vontade fazer xixi. Ou 'usar o toalete', já que hoje eu estava em um ambiente culto.
- Pai, vou ao banheiro - sussurrei para ele, que fingiu não ter acabado de acordar com meu toque em seu braço.
- Tá, vá comer...
Ergui as sobrancelhas e contraí os lábios, segurando o riso. Então, de cabeça baixa, levantei da cadeira e caminhei para fora do teatro.
Eu estava lavando minhas mãos quando uma simples frase congelou o sangue em minhas veias.
- Olá, Maria Eduarda .
Meus olhos levantaram-se lentamente, vendo a imagem não exatamente agradável dela refletida no espelho.
- Olá, Alice. - disse após engolir em seco. Ela se aproximou, abrindo a torneira da pia ao meu lado.
- Que prazer em revê-la. - sorriu carismática, o que dizia nitidamente que ela não estava sendo falsa. Ao contrário de mim.
- Claro.
- Não sabia que era entusiasta de peças teatrais.
- Não sou, na verdade - respondi sem olhá-la, fechando a torneira e pegando dois pedaços de papel.
- Não entendo, o que faz aqui então? - Alice fez a pergunta de modo suave, juntando-se a mim.
- Meus pais quiseram que eu viesse.
- Entendo. E o que está achando da peça?
Suspirei. Ótimo, tudo o que eu queria: bater um papo no banheiro com a namorada do cara pelo qual eu tinha um precipício.
- Interessante. - respondi sem emoção, mas tentando não ser rude.
- Certamente é. As obras de Molière são, sem dúvida, primas. Gosto dessa peça em particular. É uma crítica acirrada à relação médico-paciente, marcada pela frieza e pelo descaso. Gosto de como ele usa o humor para nos colocar frente a manifestações do espírito humano que atravessam os séculos. As questões sociais trabalhadas por ele sempre foram muito à frente de seu tempo.
Eu fiquei a encarando por um tempo que não saberia dizer se foi longo ou curto. Ela ajeitou os óculos em seu rosto, esperando por uma reação minha, e percebi que não sabia como reagir. Meus olhos desviaram-se dos dela por um momento, e então minha mente optou por apenas concordar.
- Com certeza.
Houve um momento de silêncio. O olhar dela no meu era fixo, o que estava me deixando terrivelmente desconfortável. Quando pensei em dizer algo, vi seus olhos analisarem minhas roupas. Só então eu reparei no que ela usava: uma saia bege na altura dos joelhos, um suéter amarelo leve, meias pretas grossas e um sapato no estilo dos que minha avó usava. Seus cabelos estavam presos em um rabo de cabalo baixo e ela ficou ligeiramente sem graça ao perceber que eu a estava observando. Seus dedos agarraram-se à saia e ela mordeu rapidamente o lábio inferior, suspirando.
- Bem, até depois. - eu disse dando um meio sorriso, pronta para sair correndo dali.
- Tudo bem. - ela sorriu de volta, abrindo espaço para que eu passasse. Quando meus dedos relaram a maçaneta, ouvi meu nome ser chamado.
- Maria Eduarda ?
- Sim? - virei o rosto para encará-la.
- Gostaria de dar um passeio ao shopping comigo qualquer dia desses?
Pelo que me pareceu ser a centésima vez no dia, eu não soube o que dizer. Cada célula do meu corpo gritava não, mas o jeito como ela me olhava levou meu cérebro a pensar duas vezes. Era um olhar inocente, quase infantil, que de alguma forma implorava para que eu dissesse sim. As íris castanhas brilhavam enquanto me observavam e de repente eu me vi com pena dela. A palavra saiu de minha boca antes que eu percebesse.
- Claro.

Geek - H.SOnde histórias criam vida. Descubra agora