As Crias Inferiores

Obrigações da Juventude. - Parte 1

   A janela começou a lançar uma penumbra desconfortável conforme aurum se erguia acima do nível das muralhas. Gysha odiava que seus pais haviam decidido comprar uma casa na parte externa da cidade, pois a luz fraca da manhã sempre ardia nos olhos da garota fazendo com que sua insônia trabalhasse a todo vapor.

   Assim que seus pés tocaram o piso gelado do quarto, ela começou a se preparar para o que diziam ser o dia mais importante de seu ano. Seu pai havia deixado suas vestes especiais lavadas e dobradas encima da bancada de sua escrivaninha, e em em poucos minutos ela já estava totalmente vestida, com o suporte de sua lança pendendo nas costas e as botas revestidas que ganhara na tarde anterior apertando seus pés. "Se é uma convocação para um projeto do imperador, você deveria apenas aceitar e se orgulhar.", era o que sua mãe dizia sempre que ela perguntava o motivo de ter sido escolhida para fazer parte desse evento.

- Então poderiam pelo menos ter me presenteado com alguma arma nova. - A garota resmungava irritada enquanto encaixava a velha lança de linha de seu avô no suporte.

   Ela havia passado tanto tempo polindo e afiando aquela veterana de guerra na ultima semana que quando olhou para conferir a lâmina, era possível enxergar seus olhos cinzentos refletidos como em um espelho, enquanto o entalhe de flor-de-cerejeira que detalhava a base de metal lembrava com seu tom fosco o quão gasta era aquela arma.

   O movimento na cidade estava estranhamente alvoroçado para uma manhã comum, e ao olhar pela janela ela via uma quantidade enorme de servos acompanhando alguns soldados pela rua que levava à escadaria da entrada interna. A casa de seus vizinhos estava com todas as janelas abertas e o filho mais velho deles, que fazia parte da guarda distrital, arrumava o suporte que envelopava suas asas no restante da armadura, enquanto crianças corriam pela rua como se estivessem brincando de pega-pega.

   Ficar olhando o movimento pela janela sempre a distraia, e quando ouviu a aguda voz da serva ela pensou por um momento que uma das crianças do lado de fora estava gritando algo para ela, que demorou alguns segundos para entender o que estava acontecendo.

- Com licença. Desculpe se te acordei, mas a mestra Naala pediu para que a senhora termine de se aprontar e então desça. - Através da porta, o tom tímido e infantil na voz da criatura despertou a jovem de seu transe. - Perdoe-me caso eu esteja lhe estorvando, minha senhora.

- Não está... Coma alguma coisa antes de começar a sua rotina - Gysha ainda não havia se acostumado com a presença da menina. Sua família raramente tinha uma boa reserva de dinheiro, e por isso ela nunca havia tido um serviçal antes.

   Ela era de uma espécie bastante nova entre os criados do império, e Gysha tinha ouvido de um vizinho que uma das tribos da raça deles havia sido devastada durante o último verão alhräno. Os filhotes que haviam sido adotados naquela época demoraram bastante tempo para serem doutrinados e amadurecerem, por isso não havia quase nenhum deles sob posse das famílias locais. O cabelo da menina era de um tom púrpura bastante bonito, que se destacava de sua pelagem fina e totalmente branca.

- Eu sei que já perguntei, mas qual o nome que deram para você? – Gysha olhou para a pequenina enquanto seus olhos azulados brilhavam de uma forma marota – Não que eu me importe muito com qual seja sua espécie, mas tem poucos iguais a você por ai.

- Os grandes senhores que nos salvaram chamaram a mim e aos meus irmãos de "sultras" – O tom de voz da menina parecia bastante triste conforme respondia – mas o nome que mestra Naala escolheu para mim é Albaris, então por favor me chame dessa forma. – Claramente o nome da menina havia sido inspirado em Albahr, a lua das profundezas. Ela não pode deixar de concordar com o quão bem ele encaixava com a garota, pois os tons frios de sua pelagem e o azul marinho de seus olhos davam a ela a mesma aura de gentileza serena que os dominadores da energia albahr possuíam.