18 de Fevereiro de 2012 - A Fuga, O Bar e O Amigo

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Você já pensou em desistir? Já sentiu vontade de abrir mão de tudo e simplesmente sumir? Assim... Acordar numa manhã de quarta feira nublada, tomar um banho, ter um belo café da manhã, subir as escadas, escrever uma última carta e se enforcar com o cadarço do tênis? Já passou horas imaginando quem sentiria sua falta caso você desaparecesse e chegou a triste conclusão que você simplesmente não fazia diferença? Alguma vez você já sentiu que, apesar de todos os teus esforços, você sempre seria insuficiente? Que, quanto mais você tentasse fazer a coisa certa, tudo o que você realmente fazia era piorar as coisas? Então Enzo, eu me senti assim cada maldito minuto da minha vida desde a noite que minha mãe partiu.

Me senti assim todos os dias que chegava da faculdade e entrava em meu quarto e era obrigado a rezar de joelhos, pedindo perdão por ser um viado nojento e sujo, enquanto meu pai me batia repetidamente nas costas com a fivela do cinto. Me senti assim toda vez que precisava contar como me sentia para alguém mas tinha vergonha e medo de tudo e de todos. Me senti assim, quando eu implorei para Deus que cuidasse da minha mãe lá em cima enquanto eu limpava o sangue que me escorria diariamente enquanto estava sendo punido por ser diferente. Me senti assim quando ninguém me ouviu. Quando cheguei em casa e vi meu pai pendurado no teto do meu quarto e li suas últimas palavras dizendo o quanto eu era imundo e culpado pela morte da minha mãe. Quando passei uma semana sem conseguir dizer uma palavra, ou chorar, ou comer ou dormir. Quando eu fiz minha primeira tatuagem, dei meu primeiro trago e tomei meu primeiro porre.

Quando Deus e o mundo lhe vira as costas e lhe trata como um lixo descartável, nada mais resta do que agir como um. E foi o que fiz. Eu sempre fui um super herói, e meu super poder é transformar em merda tudo o que toco. A partir de então, do meu jeito, passei a desafiar a morte todos os dias. E no fundo, sempre implorei que ela vecesse.

Você deve estar se perguntando o motivo de eu ter surtado quando a gente se beijou pela primeira vez. Deus, você deve estar se perguntando o motivo de eu ter surtado todas as outras vezes. Eu não espero que você entenda, ou que tenha compaixão de alguma forma. Eu não preciso disso. A única coisa que eu quero que você saiba, é que, quando tudo aconteceu, quando tudo foi tirado de mim, eu decidi nunca mais chegar perto de outro cara. E aí você apareceu. E tudo que eu queria era chegar perto de você. E ao perceber o poder que você tinha sobre mim, eu fiz o melhor que sabia: Ser um imbecil. Te afastei. Sempre tive talento em fazer com que as pessoas fossem embora, e com você, Enzo, não foi diferente.

Quando nos beijamos naquela noite, eu não pude deixar de pensar em tudo que aconteceu há três anos. Eu nunca quis tanto alguém como eu quis você. E isso me deixava furioso. Eu odiava o fato da sua presença mexer tanto comigo. Sempre fui independente. Sempre fui aquele tipo de pessoa que, depois de uma transa com uma pessoa qualquer que conheci na noite anterior, saía pela manhã, sem me despedir e nunca mais aparecia na vida dessa pessoa. Com você era diferente. Eu não queria um beijo, uma noite, uma transa. Eu queria uma vida. Mas no meu mundo torto, quanto mais me aproximo de alguém, mais eu quero distância, entende? Então eu fugi.

Depois de te mandar sair do meu quarto, eu precisava respirar. Precisava entender aquela merda toda. Eu precisava me afastar de você. Eu não podia permitir que você entrasse na minha vida. Mal sabia eu que você já fazia parte dela desde o seu primeiro tropeço no pátio.

Arrumei minha mochila, peguei uma grana que estava guardada comigo e desci as escadas. Liguei a moto e acelerei. Era hora de ir para o único lugar o qual eu realmente me sentia em casa depois que fiquei sozinho no mundo. Mesmo com Ana em casa e com todo o carinho que eu recebia dela diariamente, era fora da cidade, na rodovia, num bar chamado Texas, que eu realmente podia ser quem eu queria ser. Mesmo que isso significasse me destruir aos poucos.

Depois do suicídio do meu pai, eu precisava sair um pouco. Então, como dessa vez, peguei a moto e saí sem rumo. Depois de alguns quilômetros, passei em frente a um bar na beira da estrada, com a estrutura de madeira, feito aqueles bares de filmes de faroeste. Decidi então entrar e tomar um refrigerante. Sentei em frente ao balcão e olhei ao redor. O chão estava tomado pela areia trazida pelo vento, as mesas empoeiradas e alguns bêbados fumando e jogando cartas na mesa do fundo. "Que lugar imundo", pensei. 

"Nos fins de semana a gente dá uma arrumada e a casa fica lotada!" - Ouvi uma voz grossa dizer.

Me virei rapidamente e olhei assustado. Do lado de dentro do balcão, vi um homem enorme, com uns dois metros de altura, robusto, a barba de uns vinte centímetros de comprimento, olhos escuros e com um o cabelo amarrado estilo rabo de cavalo. As tatuagens ao longo do pescoço e dos braços cobriam a pele que inicialmente era branca. O sujeito secava um copo de vidro com um pano branco enquanto movimentava um palito de dente no canto da boca. Olhei para ele e não consegui dizer nada.

"Então... o que aconteceu, garoto?" - Ele perguntou

"Co... Como assim?" - Gaguejei

"Camisa passada, calça social, gravata, sapatos e pilotando uma moto daquelas?! Alguma coisa com certeza não está no lugar certo! Engomadinhos como você não aceleram por aí sem rumo, a menos que estejam a procura de algo..."

"Eu não quero falar sobre isso"

"Uh, do tipo calado. Ok. E o que vai ser? Cerveja, Vodca?"

"Uma coca, por favor!"

Ele me encarou como se eu tivesse cometido um crime. Foi até o freezer e logo me voltou com uma lata. Encheu meu copo. Tomei um gole. Ele voltou a secar os copos e morder aquele palito nojento. O encarei por alguns minutos.

"Você quer ouvir uma história completamente perturbadora? - Perguntei, sério.

Ele nem mudou o semblante. Pegou dois copos minúsculos, afastou a lata da minha frente e serviu duas doses de uma bebida cor de ouro e me deu uma dose.

"Se é realmente pertubadora, precisaremos disso... Por conta da casa!" - Disse o sujeito, sorrindo.

Virei a dose, que desceu em chamas pela minha garganta. Foi a primeira dose de tequila que eu tomei na vida. Tossi um pouco, e então comecei a contar. Ali mesmo, para um desconhecido num lugar imundo na beira de uma estrada, eu conseguir dizer em voz alta tudo o que me atormentava. Acontece que esse desconhecido, depois de meses, veio a ser meu melhor amigo. Frederico Kober, filho de um alemão com uma brasileira e grande herdeiro de um boteco no meio do nada, como ele costuma dizer. Lico, como ele era conhecido entre os bêbados, trapaceiros e mendigos da região me ouviu durante todo aquele dia e me ofereceu um quarto que ficava em cima do bar, para que eu ficasse até que tudo se acalmasse.

Depois de algum tempo de amizade com o Lico, você se vê imerso num mundo completamente diferente. Nos fins de semana, o bar lotava de apostadores que vinham participar de um torneio de pôquer. Prostitutas andavam pelas mesas, seminuas e sentavam no colo dos jogadores que mais properavam na mesa. No fundo do bar, um pequeno palco, com um piano velho, herança do pai do Lico, vários artistas anônimos e ferrados se apresentavam. Viciados faziam carreiras de pó e motoqueiros gritavam enquanto brindavam com um copo de shopp. No fim de semana, o Texas era como uma amostra do inferno, reunindo todo tipo de pecador e sujeira do mundo em um só salão. E era ali que eu me sentia em casa. Com o passar do tempo, me tornei um deles. Apesar de aparecer no bar somente quando as coisas complicassem de verdade, o estilo de vida daquele moquifo se apossou de mim. Logo me vi usando cuturnos, calças de couro pretas, tatuagens ao longo do meu braço. Comecei a fumar e fiquei mais tolerante a tequila do que nunca. As noites no Texas me mudaram. E era hora de voltar para lá. Só nao imaginei que retornar para aquele balcão sujo me faria passar pela situação mais inesperada que eu poderia imaginar.

 Nota: Esse capítulo, narrado por Victor, possui outra parte.

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