UM - Parte 3

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Meje

Encaro a areia escorrendo entre os meus dedos. Isso é errado de uma forma que não deveria ser possível. Não a areia em si. Não estamos tão longe assim da praia para isso ser algo estranho. Mas a forma como não tem nenhum vestígio de nada nela - nenhum sinal dos animais pequenos que sempre estão em qualquer tipo de terra nem do tipo de poder que cobre toda essa região - não é natural. A única coisa aqui é uma sensação que é quase um poder, intercalando entre um convite e uma intimação.

Por si só, isso seria um problema. Juntando o fato de que deveria existir uma fenda natural entre os véus aqui...

— Quando isso começou? — Pergunto.

Escuto Rafaela se mover e preciso me forçar a não olhar para trás. Ela parou a alguns passos de onde a areia começa, como se estivesse preocupada com o que poderia acontecer se chegasse perto demais. Ou como se não quisesse ficar perto de mim. Duas possibilidades viáveis.

— Pouco antes de você chegar na hospedaria — Rafaela fala.

Olho para ela, sem nem pensar em me levantar de onde estou agachado. Rafaela está parada quase no mesmo lugar de antes, com os braços cruzados e encarando alguma coisa mais além da areia. Não que tenha algo além das árvores de sempre ao nosso redor, o que só quer dizer que ela está evitando olhar para mim. Certo. Eu deveria ter esperado isso.

— Eu passei semanas aqui e ninguém comentou nada sobre isso.

E agora ela olha para mim, estreitando os olhos daquele jeito que é um aviso de problemas.

— Por que alguém ia pensar em comentar alguma coisa com você? Você era só um hóspede e fez questão de não deixar Vanessa nem imaginar quem você é, de verdade. Além disso, quando foi a última vez que os demônios tiveram um mínimo de boa vontade com alguém de outros mundos? Tudo tem um preço.

Travo os dentes. Não vou dizer que eu não cobrei nada dela. Não vai adiantar nada.

Balanço a mão, tirando o resto de areia, e me levanto. Aquela sensação de poder ainda se segura em mim por mais um instante, como uma promessa e uma ameaça ao mesmo tempo, antes de se afastar.

Rafaela continua me encarando quando saio da areia - da área de deserto - como ela falou mais cedo.

Foi erro meu, também, por não ter notado isso quando vim até a casa de Rafaela, da outra vez. Agora que estou prestando atenção, é fácil demais perceber a dissonância no poder da mata. Não. Não chega nem a esse ponto. É só uma impressão de algo que não deveria estar aqui, mas é algo que eu deveria ter notado. E teria percebido se não estivesse completamente focado em tentar passar pelas defesas de Rafaela.

— Quem mais sabe disso? — Pergunto.

Ela balança a cabeça devagar antes de soltar os braços.

— Alessio. Ele defende esse território e foi quem me avisou quando as primeiras fendas desapareceram. E ele não vai interferir em nada, se é isso que quer saber.

Ótimo, mas não é a única coisa que me interessa.

Fendas naturais aparecem e desaparecem quando bem entendem, especialmente em uma região carregada de poder como essa cidade. Eu nunca vi um lugar assim ou uma passagem tão forte e estável quanto a que fica na hospedaria. Além disso, estamos perto da praia. Então uma fenda desaparecer e ter areia num lugar novo não deveria ser nada que chamaria atenção, não inicialmente. Mas, pela forma como Rafaela falou, eles já estavam acompanhando o crescimento das áreas de deserto desde o começo, como se tivessem certeza de que eram algo errado.

— Só ele?

Rafaela estreita os olhos de novo antes de desviar o olhar.

— Marrein sabe.

Ah.

Assinto devagar. É a peça que faltava. Essa sensação na areia é algo muito específico que ninguém além dos demônios deveria ser capaz de reconhecer. Mas Marrein sabe de muitas coisas que não deveria. E isso também explica porque Rafaela não falou o nome dela primeiro: até pouco tempo atrás, Marrein era caçada pelos demônios. Um erro, na minha opinião, porque foi justamente isso que fez com que ela fosse atrás de tantas informações que mais ninguém deveria ter. E foi assim que ela conseguiu sua liberdade - porque ir atrás dela era um risco maior do que deixá-la em paz.

— Eu não vou falar onde ela está — Rafaela começa, me encarando.

— Eu não ia perguntar.

Ela para, de boca aberta. Ótimo. Essa é a primeira reação espontânea que vejo desde que cheguei aqui.

Passo por Rafaela e começo a seguir a trilha, voltando na direção da sua casa. Não vou ficar parado aqui, ao lado dessa areia, mas também não posso ir para a hospedaria. Eu deveria ter pensado melhor quando desafiei Vanessa, da outra vez que estive aqui. Mas não achei que fosse voltar para essa cidade depois da reação de Rafaela ao me ver. Então a única opção é a casa de Rafaela, porque tem coisas que não podem ser faladas ao ar livre.

Rafaela demora alguns segundos, mas vem na mesma direção. Quase consigo sentir a irritação dela e isso é melhor que a indiferença gelada. Qualquer coisa é melhor que a indiferença.

— Vocês entraram em contato com Marrein?

Ela não responde na hora, o que não é nem uma surpresa, considerando como sua primeira reação foi defensiva. Não falo nada, só continuo andando no mesmo passo lento. Não adianta insistir. Rafaela precisa decidir se vai confiar em mim ou não.

— Ela nos avisou primeiro — Rafaela fala.

O que quer dizer que alguém aqui tem contato com Marrein. Não acho que seja Rafaela, então pode ser qualquer um na hospedaria ou até mesmo esse Alessio que ela mencionou. Ou talvez as pessoas da cidade que fica mais além da mata, mas acho pouco provável.

E, se Marrein os avisou sobre a possibilidade disso acontecer, é porque ela viu isso em outro lugar. Não é algo isolado a Lua Azul.

Respiro fundo e solto o ar devagar. Quando vieram me avisar que uma certa Rafaela estava procurando por mim, cheguei a pensar que talvez, só talvez, nós fôssemos ter uma chance de conversar. Por que outro motivo Rafaela estaria vindo atrás de mim? Ilusão. Depois, quando ela propôs o acordo daquele jeito, achei que era só uma forma de se livrar de mim de uma vez por todas. Não a julgaria se fosse, só diria que existem formas melhores de fazer isso. Mas agora...

Meses. Faz meses que a areia está se espalhando e só agora ela pensou em ir atrás de ajuda. Não. Atrás de mim - porque tenho certeza de que Rafaela gastou todas as opções que tinha antes de atravessar a passagem e ir para o meu mundo.

Minha culpa. Se isso for o que acho que seja, cada dia que a areia continua crescendo é um risco a mais. E eu poderia ter sido avisado bem antes - ela poderia ter pedido minha ajuda bem antes - se eu tivesse insistido um pouco mais, quando tudo aconteceu, sete anos atrás. Se tivesse conseguido fazer Rafaela me ouvir. Se tivesse tentado recuperar a confiança dela, de alguma forma.

Não que ficar pensando nisso sirva de alguma coisa. É tarde demais para consertar tudo isso. Faz anos que é tarde demais, e não sei porque ainda tenho a ilusão de que as coisas podem voltar a ser como eram antes.

— Tem mais — ela fala.

Paro e olho para trás, mas Rafaela já está passando por mim, andando depressa na direção da sua casa.

Fogo e Névoa (Entre os Véus 3) - DEGUSTAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora