CINCO - Parte 1

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Eu devia ter ligado de volta para Vanessa assim que peguei o celular. Ela não me liga à toa. Ela nunca fez isso desde que chegou aqui e com certeza não ia começar só porque queria saber o que tinha acontecido. Foi isso que eu pensei - que ela queria saber o que tinha sido a mensagem de Alessio e o que Meje tinha visto. Mas Vanessa teria esperado eu entrar em contato.

"Preciso de você aqui. Traz o demônio se for o caso."

Só isso. Duas frases. E tão fora do normal de Vanessa que...

Faço a curva para entrar na hospedaria depressa demais. Odeio esse barulho e o cheiro de borracha queimada. E bater a picape não vai adiantar nada, até porque não parece que tem nada demais. Pelo menos não na hospedaria como ela é no nosso mundo.

Paro no meu lugar de sempre e desço de uma vez, batendo a porta com força e sem me preocupar em trancar o carro. Ninguém nessa cidade é louco de pensar em roubar alguma coisa na propriedade da hospedaria e, mesmo que alguém seja, os pequenos estão por aqui. Eles sempre estão.

E não vou pensar que continuo sem saber o que aconteceu e pode ser que não estejam. Não vou entrar em pânico.

Meje sai da picape e para, respirando fundo. Me esqueci completamente que ele não está acostumado com carros e coisas assim. Ele dá um passo para o lado e Marrein sai, ainda se movendo daquela forma tão cuidadosa que tenho certeza de que ela não está tão bem quanto parece. Mas é o que ela falou: bem o bastante.

Marrein para ao meu lado, encarando a hospedaria.

— A diferença que ter alguém cuidando desse lugar faz... Nem parece o casarão abandonado de antes.

Balanço a cabeça. Ela não está errada. Quando cheguei em Lua Azul, isso aqui parecia mais uma casa mau assombrada de um parque de diversões abandonado. Mas ficar parada aqui não vai adiantar nada e eu sei que não preciso esperar ninguém.

Termino de dar a volta no casarão. O que quer que tenha acontecido, se Vanessa está me esperando vai imaginar que vou entrar pelos fundos, então não vou inventar de fazer alguma coisa diferente agora.

E ela não está na cozinha - mas tem uma trilha de gelo indo na direção do saguão de entrada. Sina. E se é uma trilha limpa, então isso quer dizer que não foi nenhum tipo de ataque.

Vanessa está sentada na escada, de cabeça baixa, e Nero é uma mancha escura atrás dela, sem nenhum vestígio de nada humano - filamentos de sombra se espalhando ao seu redor e se agitando de uma forma que é um aviso claro. Sina não está visível, mas a temperatura está tão baixa que tenho certeza que ela está aqui em algum lugar.

— O que aconteceu? — Pergunto.

Vanessa levanta a cabeça. Seus olhos estão vermelhos de um jeito que eu nem sabia que era possível acontecer.

— Olhe — ela fala.

Não.

Continuo parada na entrada do saguão e deixo um pouco do poder vazar para minha visão. Estar aqui vendo o que é a realidade da hospedaria nunca foi confortável. As linhas de poder se movendo por toda parte, sendo puxadas e afastadas ao mesmo tempo, fios sempre em movimento ao redor da passagem. E a própria passagem - quase como um holograma, mas de alguma forma mais instável, sem parecer que está realmente aqui ou em outro mundo e flutuando entre todas as possibilidades. Isso me incomoda e me deixa zonza. Sempre foi assim e nossa teoria é de que é o que acontece com o poder de uma bruxa perto demais de uma passagem tão forte.

Mas não tem nada disso agora. Nenhum fio de poder, nada das luzes e cores que sempre cercaram a passagem, mesmo antes de Vanessa vir para Lua Azul. E a própria passagem é quase um rasgo na realidade, com bordas definidas e parecendo que o que está dentro dela está em preto e branco.

Como se a passagem estivesse se fechando, mesmo que isso não seja possível. Não assim. E...

Os olhos vermelhos de Vanessa.

Dou dois passos na sua direção. A mancha de escuridão atrás dela se agita ainda mais, se espalhando de uma forma que cobre todo o espaço ao redor da escada.

— Vanessa!

Ela levanta a cabeça de novo e seus olhos estão mais vermelhos.

— Vanessa, para com isso!

Ela balança a cabeça com força e fecha os olhos.

Merda.

E agora eu entendo porque Nero está tão agitado que não sobrou nada de humano.

Praticamente corro na direção de Vanessa e me abaixo na sua frente, segurando seus ombros. Os fios de escuridão se agitam ao meu redor, com um ruído farfalhante que nunca é um bom sinal.

— Vanessa, para de lutar contra o poder. Se você continuar...

Ela balança a cabeça de novo.

— Se eu não continuar, a passagem vai se fechar.

Puta que pariu, que todos os poderes e divindades me livrem de pessoas que acham que carregam o mundo nas costas.

Balanço Vanessa com força e ela abre os olhos.

— Se você continuar, você vai morrer. A passagem não vale isso.

— Eu não posso...

Ah, se foder. Tem sangue começando a escorrer, como se fosse uma lágrima.

— Vanessa! A passagem de Lua Azul não é a única no mundo. Acha mesmo que se matar para segurar uma passagem aberta por mais alguns minutos vai fazer alguma diferença para alguém? Ou que vai se matar aqui e a passagem vai continuar aberta milagrosamente? Não é assim que funciona. Se matar para manter a passagem aberta só vai servir para mostrar que você é arrogante demais para ver a realidade.

Vanessa se afasta de mim de uma vez, como se tivesse levado um tapa. Me levanto e dou um passo atrás. Não preciso me virar para saber que a passagem está se fechando ainda mais depressa agora. Vanessa passa a mão no rosto e para, encarando a mancha de sangue na sua mão por um instante antes de olhar para mim. É, eu não estava brincando.

A escuridão gira ao redor de Vanessa e tanto ela quanto Nero desaparecem um instante antes da passagem terminar de fechar.

Ótimo. Perfeito. Isso era tudo o que faltava agora.

Respiro fundo e fecho os olhos por um instante. Foco. Não aconteceu nada demais aqui. Já está tudo sob controle, eu não preciso continuar com essa sensação de que alguma coisa vai pular em mim a qualquer momento e preciso estar preparada.

Eu acho que preciso de uma bebida.

Me viro para voltar para a cozinha. Meje e Marrein estão parados do outro lado do saguão, ela encarando onde a passagem estava e ele me encarando. É claro que tive plateia.

Solto o ar de uma vez e passo por eles, andando depressa. Marrein só dá um passo para o lado e continua encarando o meio do saguão, mas praticamente consigo sentir o olhar de Meje nas minhas costas antes de ouvir seus passos.

— Não achei que você fosse ter coragem de falar daquele jeito com ela.

Olho de relance para ele. Daquele jeito como? Usando a verdade como uma arma? Ou a parte em que eu aproveitei que já notei um dos medos de Vanessa - de ser arrogante demais, provavelmente se comparando com alguém que conheceu antes de vir para cá - contra ela?

Não tenho tempo para isso, nem paciência, nem energia.

— Sete anos, Meje — falo e continuo na direção da cozinha. — Sete anos. Muita coisa mudou.

— Eu notei.

E eu me recuso a analisar essa resposta dele de qualquer forma. Que bom que ele notou. Ponto final. Eu ainda estou tremendo por causa da adrenalina e quero alguma bebida.

***

N.A.: oi, acelerando a quantidade de posts de novo :v hahahaha

Fogo e Névoa (Entre os Véus 3) - DEGUSTAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora