Meje
A água gelada no meu rosto já deixou de ser uma sensação boa faz um bom tempo, mas não quero ter que abrir os olhos e desligar a mangueira. Fazer isso quer dizer que vou ter que entrar, ir atrás de Rafaela e tentar corrigir o que eu fiz. E quanto mais eu demorar, pior vai ser, porque ela vai ter mais tempo para pensar.
Desligo a mangueira e a enrolo no mesmo lugar que estava antes. Ainda tem um resto de calor nas brasas do forno, e isso é mais que o suficiente para usar um fio de poder para me secar e então colocar a forma humana mais uma vez. Eu notei como Rafaela fez questão de não olhar para mim, também, e isso não é uma surpresa. Ela nunca teve medo de mim, desde a primeira vez que me viu, mas foram sete anos sem o menor contato. Sei o que a maioria dos humanos pensa sobre nós, vi o suficiente das suas histórias. Então eu deveria ter imaginado que Rafaela não ia considerar que eu estar na minha forma natural era algo normal.
Os diabretes levantam as cabeças quando vou na direção da porta dos fundos da casa. Quase me esqueci deles.
— Vocês conseguem entrar se eu fechar a porta?
Os cinco voltam a prestar atenção na carcaça que estão terminando. Vou entender isso como um "sim".
Nenhum ruído dentro da casa. O forno está ligado, mas não vou parar para ver o que Rafaela colocou para assar. Considerando o tempo que demorei para entrar, deve ser alguma coisa congelada. E se ela não está aqui, deve estar na sala.
Rafaela levanta a cabeça assim que saio do corredor, mas não olha para mim.
Alguma reação é melhor que nenhuma.
— Me desculpe. Eu não deveria ter feito aquilo — falo.
Ela se vira para mim, sem se levantar, me encarando tão sem expressão que tenho certeza de que está se controlando para não me mostrar nada.
Isso não deveria me incomodar o tanto que incomoda.
— Era o que fazia mais sentido, especialmente levando em consideração como você dormiu praticamente assim que se deitou aqui. Valia mais a pena ter você recuperada de verdade para quando voltarem... E eu já falei isso antes.
Suspiro e fecho os punhos. Rafaela continua me encarando, sem nenhuma expressão e sem falar nada e isso é mil vezes pior do que se ela estivesse discutindo. Isso quer dizer que ela não se importa o suficiente para discutir.
— Eu devia ter falado sobre isso com você antes, também. Quando notei eles se aproximando e você começou a se agitar, foi reflexo. Era o mais simples a se fazer. E achei que não fosse se importar. Não teria se importado, antes.
Rafaela inclina a cabeça para o lado e dá um suspiro pesado.
— Sim. Não teria. Mas isso foi sete anos atrás. Você não tem esse tipo de liberdade.
Eu quase consigo ouvir a parte não falada: não mais.
Assinto devagar. Deveria ter imaginado isso e esperado essa reação, mas de alguma forma... Não sei o que esperava ouvir. Não isso. Não assim.
— Não vai acontecer de novo.
Ela assente e volta a prestar atenção em alguma coisa que o encosto do sofá não me deixa ver.
Se eu sair agora, isso só vai piorar - o que quer que isso seja. E se vamos ter que trabalhar juntos, como parece, não quero esse clima pesado e tensão constante. Contorno o sofá maior e me sento na poltrona do outro lado. Rafaela olha de relance para mim, mas continua prestando atenção no seu celular. Claro. Eu deveria ter imaginado. E preciso quebrar o silêncio de alguma forma.
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Fogo e Névoa (Entre os Véus 3) - DEGUSTAÇÃO
Romantizm-= Versão inicial não revisada. A versão final VAI ter alterações. =- (Já à venda na Amazon!) Rafaela ainda era uma criança quando invocou um demônio pela primeira vez, com um pedido simples: queria um amigo. E, durante muito tempo, teve o que queri...