Mariah
Agora
O meu problema é sentir tristeza com tudo o que penso.
Meus olhos procuraram o canivete que comprei há dois meses do Ivan.
Dei meu último dinheiro em troca da minha ruína.
A noite já corria. E eu lá na laje, vendo o pouco movimento da rua.
Mariana passou com o marido e seu barrigão de quase oito meses. Senti como se aquela barriga fosse o melhor lugar de todo o mundo para se estar.
O canivete chamou minha atenção de novo. Ele tem sido meu amigo por todos esses dias. Um corte aqui, outro ali, sensação de satisfação, de alívio.
Eu escolho o meu fim.
Nuca mais! – grito em meu pensamento.
Ao lado do canivete, há um cartão do meu ex-namorado. Eu ainda não abri.
Cartão em era digital!
Eu sei...
Estou diminuindo o cartão porque estou com medo de abrir, de ler e de desistir do que me propus a fazer hoje.
Confesso que agora são duas coisas a me chamarem: o canivete e o cartão.
É como o bem e o mal. Dois lados que, de certa forma, vão mudar minha vida, o rumo da minha história.
Quem eu vou deixar vencer?
Dois meses antes do agora
- Mariah! Fica na sala que eu quero falar com você.
O Professor de Química me chamou.
Aqueles olhos estavam sempre atentos a mim.
Eu sabia que ele ia questionar minha nota.
Eu sentei numa cadeira. Ele sentou ao meu lado.
- Por que essa nota?
- Porque eu não estudei.
Ele era um cara no alto dos seus 40 e poucos anos, mas fazia o tipo garotão.
Ele afagou meus cabelos.
- Aconteceu alguma coisa?
- Não.
- Eu quero te ajudar.
Sua mão pousou na minha coxa.
A outra mão veio pra minha nuca.
Tive a impressão de que ele ia...
- Tira a mão de mim.
- Que isso, Mariah?!
- Foda-se!
Fui até a direção.
Foi a pior decisão. Eu deveria ter caído fora e deixado pra lá.
Ele era amado na escola.
As meninas achavam ele um crush. Os meninos achavam ele o cara.
Ele só fez "colocar a mão em mim".
Naquela porra daquela escola só Jaiminho ficou do meu lado.
Me trocaram de turma e virei o Judas da escola.
Disseram que era coisa da minha cabeça, que eu era uma pobre coitada com o pai bêbado e a mãe sumida no mundo.
Eu era uma perdida, uma lésbica...
Sociedade Canalha!
Poucos dias antes da Sociedade Canalha
Entrei no quarto da Mel sem bater.
Ela dedilhava seu violão.
- Vamos conversar? Eu sei que você está irritada, mas eu também estou.
Calada.
- Você pode até me ignora, mas não é surda.
Ela parou de tocar e me olhou.
Eu sentei na cama ao lado dela.
- Ele me beijou de repente.
Sua voz veio abarrotada de um tom amargo.
- Você correspondeu.
- Eu estava frágil por causa da minha mãe.
- Mariah, eu estou magoada sim. Quando vi você com o Jaiminho, percebi que você não sabe exatamente o que você quer. Menino, menina, os dois, nenhum? Eu sei muito bem o que eu quero e a sua dúvida só vai me quebrar.
- Você fica magoada e a primeira atitude é arrumar alguém?
- Eu errei.
- Vamos passar uma borracha em tudo – sugeri.
Mel se levantou da cama.
- Eu e a Nice estamos namorando. É o que eu quero por agora.
Eu só senti uma dor de cabeça aferroada.
Saí sem falar nada.
Era o fim da "Marimel".
Alguns dias antes do fim da Marimel
Eu vi Mel passar com Nice pelo pátio da escola.
Nice era linda.
Porém nossa história não se moldava pelos limites da aparência. Era algo muito mais profundo. Mesmo assim, me corroeu.
Um dia antes da Nice
Tia Vilma me abraçou com carinho.
- Pode chorar, Mariah.
Eu saí do aperto dela com a cara inchada de tanto chorar.
- Ela é uma vagabunda, tia! Como ela pode?
- Seu pai sempre bêbado. O Vizinho fazia tudo.
Imagino o quanto ele era prestativo!
Minha mãe fugiu com o vizinho e me largou com um pai alcoólatra e dois irmãos pequenos.
Mel entrou pela porta da cozinha.
- Oi, tia Vilma. Vim ver como Mariah está.
- Que bom.
Mal entramos no quarto e ela me tascou um beijo. Depois, foi só sexo entre meninas.
- Você me perdoou?
- Não.
Mel se vestiu e saiu batendo a porta.
Três dias antes do sexo entre meninas
Fiquei olhando o pessoal patinar na praça.
Jaiminho me trouxe um sorvete de coco.
- Continua.
- Então... Eu peguei-a com o vizinho na cozinha. Eles estavam cheios de segredinhos. Ela ria toda se dando. Quando me viram, o clima ficou tenso. Ele deu tchau e ela disfarçou.
- Eu... Não queria falar, mas sua mãe me dava uns olhares estranhos quando a gente namorava.
- Como?
- Não tenho certeza...
- E você?
- Eu sempre gostei de você e ainda gosto.
Eu olhei pra ele e me senti estranha.
Aquele amor todo era pra mim.
Ele não disse "Te amo", mas foi quase isso.
Jaiminho percebeu a minha mudança.
Foi um beijo leve, gelado e com gosto de coco e chocolate.
O sorvete dele era de chocolate.
Mel, virou fel.
Ela viu o beijo e foi embora chorando.
Dois meses depois do assédio
A última coisa que eu vou fazer nessa vida é abrir o cartão dele.
"Eu sei que a barra está pesada, também percebi marcas sinistras nos seus braços. Eu sei o que elas significam. E dói me sentir impotente diante da sua dor. Estou escrevendo porque sou melhor nisso. Você precisa de ajuda, porém a principal pessoa que pode te ajudar é você mesma.
Transforme suas dores em força. Ame e, se o amor acabar, parta pra outra. Denuncie mesmo, porque, uma hora, os ouvidos não vão poder deixar de te escutar. Não se culpe pelo nosso beijo. Foi bom. Eu gostei e você gostou. Se Mel te ama, vai te perdoar; se não, então não era pra ser.
Estarei aqui por você."
Olhei para o céu estrelado e pensei que, se eu morresse, talvez, do outro lado, só houvesse escuridão. Eu gostava das estrelas e de meninos e de meninas...
Foi neste momento que eu descobri do que eu gostava, e foi aí também que descobri que quero viver.
Desci da laje com o canivete no bolso e o cartão na mão. Daquele dia em diante, eles foram meus grandes companheiros pelo resto da minha vida.Texto escrito por:
User: Liviavitor2020
Lívia Vitor
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Você Não Está Sozinho!
PoetryColetânea de Textos, contos e poesias. - Setembro Amarelo. O movimento setembro amarelo busca sensibilizar e conscientizar a população da importância no assunto. Nesta coletanea reunimos todos os trabalhos enviados por nossos participantes que ace...