Você já se perguntou a infinidade de coisas que se é possível fazer com apenas farinha, água e, possivelmente, algum tipo de gordura? Eu te respondo: as opções são eternas. Na véspera da minha partida, meu pai resolveu que mandaria por mim diversas massas congeladas, para que eu pudesse comer como um ser humano descente quando estivesse em Nova York. Possivelmente, ele me ouviu descrevendo a Paul as obscenidades culinárias que eram cometidas no restaurante chinês que meus colegas de trabalho me levavam e, se tem uma coisa que o meu pai leva muito a sério, além de filmes e trens, é a culinária chinesa. Ele diz que recheios ficam aguados e insossos se congelados, mas massas não: elas sobrevivem por meses se armazenadas na refrigeração certa, ele me explicou de forma detalhada e com muitas demonstrações práticas. No final da manhã, eu contava com duas bolsas térmicas cheias de rolinhos de massa congelada, que serviriam para panquecas, harumakis, noodles e, é claro, pasteizinhos. Sem dizer nada, meu pai separou parte da massa para Paul, como ele sempre fazia, e eu me senti grata pelos dois homens da minha vida – os únicos homens da minha vida, se é que você me entende – cuidarem um do outro tão bem.
Ouvi o barulho da caminhonete de Paul enquanto mergulhava alguns rolinhos no óleo para o almoço, ao mesmo tempo em que vigiava o arroz. Felizmente, eu não precisava abrir a porta para ele; em pouco tempo, estava acenando para mim na janela com o sorriso inocente de criança que nunca perdera. Minutos depois, estava ao meu lado, e então ajudando meu pai a colocar a mesa. Eu sabia que ele não queria perder meus últimos momentos na cidade, o que era extremamente fofo. No entanto, eu precisaria desapontá-lo, pois nada no mundo me faria perder o encontro – se é que eu podia chamar dessa forma – com Aster no final da tarde. Na verdade, eu não estava realmente esperando por nada romântico, embora também não estivesse completamente sem fé no destino. Eu só queria deixar as coisas claras, e ir embora com toda a verdade sobre a mesa. Deixar que ela soubesse que eu ainda pensava nela mesmo depois de todos aqueles anos, que eu tinha apreciado sua companhia nos últimos dias, que eu sentiria sua falta. Que ela podia me ligar se precisasse conversar com alguém. Que ela devia pedir o divórcio. Talvez eu não devesse ir tão longe. De qualquer forma, ela merecia a verdade.
- Você falou com ela? – Paul apareceu do meu lado de novo, roubando um dos rolinhos que eu tinha acabado de tirar da frigideira. É claro que ele queimou o dedo, jogou o rolinho para cima e gritou de dor, enfiando a pele queimada na boca para aliviar o incômodo. Eu estiquei o prato de rolinhos e consegui pegar o fugitivo antes que caísse no chão; não era a primeira vez que isso acontecia.
- Sim. Fui até o restaurante ontem. Ela me disse que Trig não é violento com ela, apenas com quem se aproxima dela.
- Cortar os laços afetivos da mulher com outras pessoas também é uma forma de violência – Paul declarou, e eu me virei para ele, chocada com a maturidade de suas palavras.
- Você pensou nisso sozinho? – Estreitei os olhos, apoiando uma das mãos na cintura.
- Na verdade, eu li em uma das revistas da minha mãe. Mas é bom, não é? – Ele sorriu para mim em expectativa, e eu sorri de volta.
- É ótimo, Paul. Completamente verdadeiro.
- E você se despediu? – Ele quis saber, levando a travessa de rolinhos para a mesa enquanto eu levava a do arroz. Passei os olhos na sala antes de responder, para ter certeza que meu pai não estava por ali.
- Vamos nos encontrar hoje, quando ela sair do restaurante. Ela tinha algum evento com Trig ontem e teve que sair correndo. Estava bem arrumada, aliás.
- Achei que passaríamos a sua última noite juntos – O sorriso dele murchou, e senti pena. Mas nada que me fizesse mudar de ideia.
- Eu passo na sua casa assim que acabar, tudo bem?
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Fugas e Retornos
FanfictionEllie deixou sua cidade natal para estudar e nunca mais voltou. Oito anos depois, uma tragédia a chama de volta ao lar, de onde Aster Flores nunca saiu.