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Aminá ficava chocada com a quantidade de arte na parede daquele salão. Havia inúmeros quadros de Basquiat estampados ali. Ela se perguntava se de alguma maneira aqueles eram os quadros originais ou se eram apenas réplicas. O professor os observava em silêncio enquanto esperava que eles se aquietassem. Aminá observou que até o corte de cabelo do professor era igual ao do pintor. Por alguns segundos ela até cogitou que o próprio Basquiat estava lhe dando a última aula do dia.
Toda aquela pressão para encontrar a chave estava a deixando maluca. Sérgio chamou sua atenção. Num piscar de olhos o professor estava a frente dela.
— Professor Leão, me perdoe.
Sérgio abriu um sorriso e se sentou no chão.
— Dificuldades para estar presente no aqui e agora?
Aminá assentiu.
— Posso ver o que lhe incomoda?
Mesmo com medo de qual seria a opinião dele ela apenas permitiu.
Sergio colocou o dedo indicador na têmpora dela e ela o sentiu entrar. Era como estar numa sala vendo ela mesma sendo observada. Sérgio não pareceu se abalar com toda apreensão que Aminá sentia.
— Me dê sua mão.
Aminá as estendeu, com as palmas voltadas para cima.
— Na aula de hoje, nos ficaremos em duplas. Com a bênção de Ostara e nossos orixás ficamos em paz, e apreciaremos a existência. Respirem fundo.
Aminá obedeceu. Ainda estava tensa quando sentiu o ar entrando. Seu corpo estava rígido e pesado. Ela queria gritar. Como era possível que mesmo com a dica do William para seguir os vagalumes ela não havia conseguido achar as salas secretas.
— Inspirem. — Disse Sérgio e Aminá o fez. — Expirem.
Aminá estava à beira de um colapso.
— Cruzes, Garota. Você está uma bagunça.
Sergio colocou as mãos sobre as dela.
— Por um momento, deixe o caos para depois. Foque no que é belo.
Aminá mal conseguia respirar.
— Inspire. — Agora Sérgio parecia falar diretamente com ela. — Expire.
Aminá tentou não pensar em nada. Era tão difícil que parecia que ela estava sendo queimada viva.
— Você consegue. — O professor disse em sua mente. — Inspire. Sinta o sol. Expire. Inspire. Sinta o vento que sopra. Expire. Inspire. Sinta seus olhos fechados. Sinta seu corpo mais leve. Expire. Inspire. Ouça o canto dos pássaros. Sinta a grama sob seus pés. Sinta a minha mão na sua. Expire. Inspire. Sinta as plantas crescendo. Sinta o cheiro das flores. Sinta o sabor das frutas. Expire...
A medida que o professor continuava a falar ela se sentia mais calma e menos ansiosa.
— Fique aqui depois da aula. — Disse Sergio em seus pensamentos.
— Como vocês estão se sentindo? — Sérgio perguntou em voz alta e esperou os alunos responderem.
Aminá ouviu atentamente o que foi ensinado, tentou anotar, mas seus pensamentos estavam no futuro. Quando a hora chegou e a sala finalmente se esvaziara, Sérgio quebrou o silêncio:
— Acho que você não gosta muito de coisas lentas, não é? — Disse ele acendendo um cigarro. Aminá permaneceu calada. — Eu te fiz uma pergunta.
— Não. Não gosto.
Sérgio tragou e soltou a fumaça deixando um cheiro mentolado no ar.
— A quanto tempo você não vai à superfície?
Aminá sentiu medo de tomar outra bronca caso não respondesse, mas não conseguia se lembrar.
— Pois bem. — Sérgio sorriu. — Você vai querer levar casaco?
Dentre suas memórias não estavam a noção de como era o tempo em Salvador. Mal fazia ideia em qual mês estavam. As lembranças de um mundo antes de ir para o colégio foram arrancadas ou escondidas em algum lugar profundo dentro dela, mas que ela não sabia como, nem se queria encontrar.
— Tudo bem, o inverno por aqui nunca foi muito rigoroso mesmo.
O professor pegou um galho sobre sua mesa e apontou para um canto na parede. O teto se abriu no topo de uma escada metálica em espiral que Aminá nunca havia notado antes.
— Se você não sabe que está ali, você não vê. A gente tende a ignorar o que não parece ser útil para a gente. — Disse Sérgio.
Aminá observou colocar sua varinha na bolsa, junto com a caixa de cigarros e um livro.
— Se você tem habilidade de canalização por que usa uma ferramenta facilitadora?
Aminá temeu que Sérgio fosse repreende-la por ter usado uma linguagem rebuscara. O que veio foi um sorriso.
— Não é por que eu aprendo um novo caminho que sou obrigado a usá-lo. Eu gosto de usar a varinha. Era de uma árvore do quintal da senhora minha vó. Que sua alma habite em nós. Que sua alma descanse no universo. — Sérgio parecia nostálgico e seu corpo parecia fluir e flutuar levemente como um barco de papel sobre a água. — Uso pois me agrada. Sanei sua dúvida?
— Estou satisfeita. — Disse Aminá seguindo o professor escada a cima.
Saíram numa sala escura e mal ventilada. Do lado de fora parecia tão vazio e sem magia. A sensação de estar na superfície era como sair de um mergulho. Depois de tanto tempo sob a pressão da água, sua pele estranha que não haja nada ao seu redor. Aminá sentia o corpo formigar. Era como se ele soubesse que estavam em um lugar diferente. E ela continuava podendo sentir as ondas de energia intensas como se ainda estivessem a balançando de um lado pro outro.
Era estranho Aminá conhecer todas aquelas sensações relacionadas ao mar quando não se lembrava nenhuma vez de ter entrado nele.
Sergio abriu a porta e saiu. Aminá continuou andando atrás dele. O céu estava azul sem nuvens e eles se encontravam em um beco com chão de pedras irregulares.
— Onde estamos?
— Cidade alta. Pelourinho.
Aminá conseguia ouvir os tambores, isso a deixava animada e apreensiva. Ela tentou não expressar isso para Sérgio.
— Aonde vamos?
— Um bar, creio eu. Quero olhar as estrelas e você precisa relaxar.
Sergio saiu andando e Aminá seguia logo atrás dele.
Não tardou a começarem a ver pessoas passando por eles. Casais. Crianças. O fluxo era contínuo. A lua iluminava melhor que os postes.
Sergio se sentou numa mesa na calçada em frente a um grupo de amigos reunidos e sinalizou para que o garçom fosse até a mesa. O rapaz examinou-o de cima a baixo. O cabelo indo contra a gravidade. A roupa de linho. Os sapatos e a bolsa pareciam caros. Aminá suspeitou que se não fosse alguns sinais o tratamento que eles teriam seria diferente.
Sergio pediu batata frita e acarajé, uma cerveja e um refrigerante em lata.
— Eu me sinto estranha.
— Então você não reconhece o sentimento que está tendo agora?
— Não.
— Consegue destrincha-ló?
— Só sei que é diferente, vergonhoso, ansioso. Parece que estou decepcionada e curiosa.
Sergio balançou a cabeça e abriu a bolsa e tirou o caderno de desenhos e um estojo de dentro.
— Seus amigos tem a chave e você não, certo?
Aminá foi pega de surpresa.
— Correto. — Ela começou a falar.
— Eu vou te ensinar uma coisa. — Sérgio abriu o caderno em uma folha com alguns rabiscos e começou a desenhar. — Acho que você é boa em entrar nas pessoas e pegar coisas. Eu vejo os garotos desnorteados depois que você os deixa sem memória em salas vazias.
O vento soprou, o som dos tambores era bem ritmado, e Aminá se sentiu constrangida e envergonhada com a confissão do professor. Porém ele não clamava que ela pedisse desculpas. Então ela deixou que ele continuasse.
— Você consegue pegar coisas sem tocar nas pessoas?
Aminá balançou a cabeça em negativa.
— Não, professor.
— É simples assim. — Sérgio inspirou e expirou. — Se você gosta do Otelo deveria contar para ele.
Aminá ficou assombrada com aquilo. Sérgio não demonstrou impacto, apenas continuou desenhando borboletas no papel.
— Sabe por que eu gosto delas? — Sérgio colocou o dedo indicador sobre o inseto que estava desenhando. — Pois elas são rápidas e sutis. Você precisa aprender tanto a se proteger para que não roubem seus pensamentos quanto você precisa ser hábil a pegar pensamentos de outras pessoas. Não precisei ir muito longe para descobri o que falei. Agora é sua vez de tentar.
Aminá ficou quieta esperando por mais.
— Você sabe feitiços de proteção?
Aminá fez que sim.
— Com palavras ou instrumentos?
— Ambos. — Aminá respondeu.
— Isso não é o bastante. Você pode usar a si mesma como proteção. Você consegue imaginar... É como cozinhar. Imagine que você está fritando a se própria, a camada exterior fica mais rígida e dentro continua mole, consegue entender?
— Não.
— Por isso eu não ensino essas coisas, sou péssimo. Vou te fazer sentir então.
Aminá o sentiu chegando e puxando um pouco dela também.
— Agora tente.
Aminá sentiu como se houvesse congelado. Ouviu Sérgio inspirar e expirar.
— Fantástico. Você aprende rápido. Agora que você sabe como permanecer do mesmo tamanho tente expandir, e quando você e estiver grande o bastante para se aproximar tente tirar algo de mim.
Aminá e Sérgio respiraram sincronizadamente.
— Não acho que Vanessa tenha inveja de você. — Disse Sérgio passando a página que estava repleta de desenhos.
— Como? — Aminá indagou.
— Quando você estava vindo, você estava tão focada em me encontrar que esqueceu que eu também poderia estar procurando por você. E quando você se aproximou de mim você não encontrou nada pois eu estava bloqueado. Tente outra vez e serei mais gentil.
Aminá inspirou e sentiu-se expandir para além da sua rigidez, sentiu a mesa, a bolsa, a varinha, o caderno de desenhos... havia algo ali. Aminá sentiu Sérgio escrevendo palavras nas asas das borboletas, ela as repetiu dentro dos próprios pensamentos.
— Boa garota. — Disse Sérgio. — Finalmente soube onde procurar.
Aminá olhou para a própria mão e para a chave entre seus dedos.
— Isso não é trapaça?
Sérgio deu de ombros.
— Você tinha que achar a sala escondida. E com esse desafio, você aprendeu a bloquear, invadir e ler objetos. Ainda conseguiu tirar objetos escondidos. Fantástico.
Aminá estava inegavelmente feliz e aliviada. As comidas chegaram e eles comeram. Ela sentiu seu corpo relaxar. Deixou-se ir, e viu Sérgio quando criança correndo por um campo verde, outro garoto o seguia, o sol estava forte, Aminá sentia a brisa, sentia a grama em seus pés. Ambos seguiam uma borboleta preta e laranja. Sérgio tropeçou e caiu. O outro garoto caiu sobre ele. Ambos riram e o garoto o beijou. Aminá sentiu o gosto de morango em sua própria língua. Ela expirou e abriu os olhos. Sérgio a encarava.
— Você é ainda mais talentosa do que eu pensei. — Sérgio riu. — Não faça mais isso.
— Não deixe mais a guarda baixa. — Brincou Aminá.
Sérgio passou os dedos pelo desenho de cédulas e deixou o dinheiro sobre a mesa com mais gorjeta do que fora cobrado.
Ambos se levantaram e caminharam em silêncio de volta a academia.

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