Promessa é dívida

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  50 anos se passaram. Meu dom se aperfeiçoou, junto comigo. Arthur e eu envelhecemos juntos na mesma casa, por toda a vida. Criamos o bebê no ateísmo, sem tocar em assuntos sobrenaturais ou nada do tipo, como forma de protegê-lo de qualquer relação com esse lado da vida. Marcos cresceu e se tornou um homem bonito, que já havia me dado netos: Dário e Yvonne, dois jovens adoráveis, mas que mal me visitavam na área rural. Moravam na cidade e eram uma família bem sucedida. Dário me visitou um dia desses e descobri que ele também possui o mesmo dom que eu. Fiquei contente por saber que pulou uma geração. Irene continua no Nova Alvorada até hoje e nunca fui visitá-la. O quarto no qual havíamos posto a caixa de música permanece trancado até hoje, e não temos nenhuma ideia do que acontece lá dentro.
  Mesmo tudo tendo corrido bem nas nossas vidas, o tempo passou e o dia chegou. O dia em que eu seria levada para o submundo e pagaria minha dívida. 
  Estava andando pelo corredor de cima em direção a escada. Quando cheguei em seu topo, olhei para o espelho e me assustei ao ver a mulher de branco novamente. Não a via há 50 anos e não queria vê-la por mais 50. Ela estava diferente agora. Não segurava mais meu bebê em seus braços. Agora segurava Dário, meu neto adolescente. Algo de ruim iria acontecer com ele. Mas antes que alguma hipótese pudesse surgir em minha mente, fui gravemente empurrada e rolei escada abaixo. 
  Acordei no hospital com Marcos e Arthur ao meu lado. 

  - Está tudo bem, mãe. Você está no hospital. - disse Marcos, tocando em meu braço. 
  - O que aconteceu? Você nunca caiu da escada. - perguntou Arthur. 
  - Dário. Cadê o Dário? - perguntei, enquanto me mexia, tentando me sentar. 
  - O quê? Ele… está em casa. Deixamos ele em casa. A Yvonne está lá fora. - respondeu Marcos.
  - Não deixe-o sozinho. Por favor, filho. Algo horrível vai acontecer com ele. 
  - Como assim, mãe? Ele está seguro. O que a senhora está querendo dizer? 
  - Marcos, querido. Pode sair e me deixar a sós com seu pai, por favor? - pedi, gentilmente.
  - Claro. Depois eu venho. Vou comprar alguma coisa para comer. - concedeu, me beijando na bochecha e saindo em seguida.

  Chamei Arthur para mais perto e segurei sua mão.

  - Estou morrendo. - disse, com voz fraca.
  - Não. Você não está. Não pode morrer. - respondeu, com seus olhos cheios de lágrimas.
  - Ele prometeu que viria me buscar em 50 anos. É hoje! Mas quero que saiba que tudo que fiz foi para o bem de nosso filho, de nossa família. Agora temos netos, nora, e isso é maravilhoso! - comecei a chorar com um misto de alegria e tristeza. 
  - Não vou deixar te tirarem de mim. Não posso. É você. Somos nós! - ele me abraçou, enquanto chorávamos juntos. 
  - Você vai ficar bem, amor! Estarei sempre com você, e Deus o consolará no luto. - respondi, acariciando seu rosto, agora com várias rugas e linhas de expressão.
  Comecei a me sentir estranha. A hora se aproximava. Pedi para Arthur ir ao encontro do médico para perguntar do meu estado detalhadamente. Uma névoa negra apareceu na frente da minha cama e o homem de preto saiu de dentro dela.

  - Ora, ora. Eu não mudei nada, pelo contrário de você, lindos olhos. - disse ele, em tom sarcástico. - Chegou a hora de cumprir o que prometeu. 

  - Nunca me terá. Nunca farei parte do vazio. Me levar seria um paradoxo, demônio. No livro de João está escrito que não há amor maior do que aquele que dá sua vida por seus amigos. Eu dei minha vida por Marcos. Eu o amo mais do que tudo. E esse amor... Esse amor destrói todos os pactos e alianças que já foram feitos com você. - respondi em tom de negação, pois me recusei a ir com ele.

  Na mesma hora, uma luz invadiu o ambiente, o que deixou o homem de preto totalmente assustado e, talvez, até agoniado. Da esfera luminosa, saiu um homem. Não consegui ver o seu rosto, pois o mesmo era envolto por uma luz que o tornava irreconhecível. Usava uma bata azul e um capuz branco. Sem falar do cheiro de rosas que se instalou no local. Se aproximou da cama e pôs as mãos sobre as minhas. 

  - Soldado celestial, pode me libertar? Me leve! - pedi, quase a chorar.

  Com sua voz doce e suave, respondeu: 

  - Você fez um grande sacrifício, digno de uma mãe. Pois só mães podem entender o ato que cometeu, e esse ato a salvou, pois ninguém tem amor maior do que uma mãe que dá sua vida por seu filho. Está liberta! E você… - ele olhou para o homem de preto. - se afaste imediatamente e volte para onde veio. 

  O homem soltou um grito ensurdecedor e desapareceu, mostrando sua forma satânica antes. O homem tocou em minha cabeça e a luz branca tomou conta de tudo, e era a única coisa que eu podia enxergar no momento. Foi nessa hora que meu espírito deixou o meu corpo e foi em direção ao céu. Sei que minha família ficou muito triste depois que parti, mas quero que a alegria tome conta assim que lembrarem que tudo que fiz foi por eles. Sempre ajudo o Dário quando precisa e Arthur sempre fica na varanda até tarde, sozinho. Talvez esperando que eu volte. Mas ele entra ao lembrar que estou sempre com ele, em seu coração, e que nosso sacrifício valeu a pena. Pois não existe dádiva maior que ser a guardiã de meu maior bem.

Mente DiabólicaOnde histórias criam vida. Descubra agora