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Foi estranho dormir em uma cama, depois de poucos dias na neve. Mais estranho ainda por minha mente repetir o acontecimento da noite anterior ao acordar. Não sei o porquê de meu cérebro ter me relembrado daquele momento, muitas e muitas vezes logo antes do café da manhã. Meu abraço com Metatorn, aquela conversa diferente... a forma como meu corpo formigou com seu toque... e pior. A forma como eu me senti culpada ao encarar Azazel no dia seguinte. O que diabos aquilo significava? Aqueles olhos azuis focados na frigideira repleta de ovos e pão, o azul duro do oceano se recusando a me encarar. Eu já havia me acostumado com a forma como ele me olhava, principalmente como meu corpo queimava em resposta. Todas as vezes em que estávamos no mesmo cômodo, ele fazia isso, me fazia borbulhar. Mas no desde o momento em que entrei na cozinha naquela manhã, até depois de terminarmos a refeição em conjunto, isso não aconteceu. Azazel não trocou um olhar comigo, e uma parte de mim doía por isso.

— Vamos, temos uma reunião com seu pai.

Anaita puxa a manga do meu casaco para me fazer acordar, me fazer sair de meus devaneios. Sigo minha amiga e os outros garotos por entre as ruas mal feitas, passos largos de botas com solas grossas. Observo a neve nos picos ao redor da cidade, e me distraio até de meus próprios passos. É quando sinto o impacto de algo firme contra minha bochecha, que me faz cambalear para trás. Depois que recupero o equilíbrio, percebo que já paramos na frente da casa de metal, e eu esbarrei no corpo parado de Azazel em frente à porta. Mas ele não pareceu notar.

Entramos pela porta pesada, e caminhamos até o escritório que eu havia conhecido no dia anterior. Um silêncio estranho se erguia entre nós. Não que já não estivéssemos em silêncio, mas agora... era pior. Era como se a conversa estivesse destinada a ser ruim.

— Bem-vindos.

Meu pai estendeu os braços para nós, indicando o sofá de seu escritório para que nos sentássemos. E como no dia anterior, arrastou uma cadeira para perto.

— Vou contar tudo de uma vez... será mais fácil de assimilar.

Ignorando o fato de minha mente não ter sequer assimilado a informação de que meu pai estava vivo em minha frente, concordei com a cabeça.

— Como eu disse ontem, o livro nos dá pistas, e regras. O sacrifício tem que ser da linhagem do rei, e o pai do sacrifício deve escolhê-lo. Não sabemos ao certo se o pai deve matar, ou se existe algum lugar específico onde o sacrifício deve ocorrer. Algumas partes do livro ainda não foram decifradas, ainda estamos trabalhando nisso.

— Você disse que sabe quem são os sacrifícios.

Falei o mais rápido que pude, temendo que a coragem me escapasse. Mas eu precisava saber, e algo me dizia que eu não iria gostar do resultado.

— Existem três sinais, para reconhecer três famílias.— pegando o livro, meu pai volta à falar— "Um pai que mataria seu filho pela honra, uma família que perde a filha para o gelo, e um garoto marcado pelas próprias garras". Como eu disse... alguns sinais ainda não conseguimos traduzir, e...

— Espera.

Interrompo, sentindo o coração saltando pela garganta, tenho que engolir em seco mais de uma vez para controlar meus impulsos.

— Está me dizendo, que eu e Abbadon somos sacrifícios?

Meu pai permaneceu paralisado, com o livro pesado em uma das mãos, e o punho fechado na outra. Me deixei refletir um momento antes de raciocinar sobre os outros em minha mente. Um pai que mataria o filho por orgulho, onde eu havia escutado isso antes?

— Quem são as outras famílias?

Minha garganta doía, minha voz era a evidência disso. Rouca e quase inaudível, mas alta o suficiente para que meu pai respondesse. Colocando o livro sobre sua mesa, ele passou as mãos pelo cabelo louro antes de responder.

— Não vai ser fácil saber disso.

Mas a ansiedade era demais, e a forma como ele demorava em um assunto assim, me irritava. Por isso me levantei em um salto. Por isso olhei para os olhos dourados marejados de Anaita. E entendi.

— Metatorn. É você não é?

Seus olhos intensos de safira penetraram os meus, e algo em mim se quebrou.

— Sim.

E antes que eu pudesse processar os acontecimentos, Azazel se colocou de pé, e se retirou da sala. Como a boa curiosa que sou, resolvi segui-lo, ignorando os protestos das pessoas ali sentadas. Era muito injusto a forma como ele estava me tratando, e eu queria poder dar-lhe um soco merecido. Foi apenas por isso que segui aquelas asas abertas até pouco antes da porta de saída.

— O que diabos está fazendo?

Puxei seu pulso com a mão firme, fazendo-o girar nos calcanhares para me encarar. Seus olhos azuis se arregalaram em surpresa, mas logo voltaram ao estado normal de indiferença. Estavam especialmente escuros naquele dia, como se o azul mal existisse, cinzentos.

— Saindo.

Ele tentou se virar para ir embora, mas eu me coloquei entre ele e a porta, abrindo as asas para impedir a passagem. Azazel se empertigou no lugar, as sobrancelhas franzidas de raiva.

— Não vai sair até me dizer o que está acontecendo.

Em uma explosão de raiva, Azazel forçou a passagem através do meu corpo, e esticou a mão para a maçaneta. Mas minha cintura estava no caminho. Quando ele se aproximou da porta, nossos narizes se tocaram, e ambas a respirações foram interrompidas. Parte de mim tinha medo de erguer os olhos, parte de mim achava seguro permanecer olhando para sua boca, parcialmente aberta. Mas a outra parte simplesmente amou quando seus dedos firmes deslisaram para o meu queixo, me forçando a olhar para ele. Talvez meu corpo todo tenha agradecido, quando nossos lábios se encontraram, arrancando um som de ambos os corpos.

Houve uma parte de mim que não gostou. A minha mente, por estar mais confusa do que nunca.

Lágrimas por asasOnde histórias criam vida. Descubra agora