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Outubro

De alguma forma, minha mãe conseguiu manter o choro enjaulado dentro de si. Mesmo quando voltei para casa meses atrás, com a notícia de que Abbadon havia sido banido. Ela não chorou, ou demonstrou qualquer sentimento. Ela apenas entrou para a cozinha e cozinhou. Depois de cinco meses, consegui parar de chorar. E meu único consolo, era que eu poderia ver meu irmão de novo quando chegasse a hora. Parei de estudar para as provas, me tranquei em um quarto escuro e me encolhi em um canto. Só saía para buscar comida, evitava os olhos curiosos e palavras que poderiam me ferir ainda mais. Não vi Ana, Cass ou Azazel em momento algum. Me sentia um pouco culpada por ter deixado aquele carro caro abandonado no meio do nada, mas eu nem tinha um celular para comunicar Azazel.

— Você está atrasada. E o que está vestindo?

Minha mãe escancara a porta do meu quarto, já se metendo nele por inteiro. Ela me olha de cima à baixo com seus olhos azuis-cinzentos perfeitamente delineados, então me puxa pelo braço. Me debato contra seu aperto, mas ela consegue me por de pé.

— Não paguei escola cara pra você e Abbadon serem banidos! Pelo menos um dos meus filhos vai passar!

Sua voz agora está intensa. Ela me coloca na frente do espelho, e começa a pentear meus fios furiosamente. As lágrimas voltam a sair por meus olhos. A essa altura, pensei já estar seca por dentro. Mas eu estava enganada. As lágrimas aumentam de ritmo conforme meu couro cabeludo é puxado para trás, a dor se intensifica quando minha mãe começa a fazer um coque alto com os fios extremamente repuxados. Um nó se forma em minha garganta.

— Como pode dizer assim? Ele é seu filho! Não sente a dor?

Quando seus olhos encontram os meus, através do reflexo polido do espelho, sei que a pergunta não teve efeito em seu coração. Ela sequer chorou quando minha irmã morreu. Ela não demonstrou perda quando meu pai nos abandonou, ela só... continuou como sempre foi. Seca, fria e morta por dentro. Qualquer resquício de carinho ou amor que tive na vida, não veio dela. E sim de Abbadon e Ariel.

— O dia de hoje é importante, amanhã é sua cerimônia. Lembre-se disso.

Não quero um par de asas idiota. Quero descobrir onde meu irmão foi parar, me arrastar até lá nem que seja andando, e vê-lo novamente. Ninguém sabe pra onde os não anjos são lavados, ou pelo menos não exatamente. Sabemos das cidades de Campos escravos mais afastadas, mas são muitas, e encontrar uma pessoa específica no meio de tudo isso é praticamente impossível. A não ser que alguém de poder te ajude, é perda de tempo. O melhor que posso fazer, é reprovar no teste, e tentar rezar para que me joguem no mesmo buraco que Abbadon.

Mas apesar das circunstâncias, concordo com minha mãe, e aceito vestir o vestido branco de alças que ela separou pra mim. O tecido leve oscila por minha cintura conforme caminho, as sapatilhas de tecido se apertam aos meus pés. Me despeço e saio o mais rápido que posso, tentando não reclamar mentalmente quando o sol fere meus olhos. Observo o campo seco uma última vez antes de redirecionar meus passos para a cidade grande, para o caminho que costumava fazer com meu irmão.

Me encolho totalmente, só de lembrar a forma como Abbadon me encarou pela última vez. Suas últimas palavras ecoam em minha meante há meses, e não existe um livro sequer capaz de retirá-las. Quando chego na cidade dourada, sua aparência já não me impressiona mais. Estou mais concentrada na dor em meus pés do que nos prédios altos e formosos. Desdobro o pequeno papel que minha mãe havia me dado, e estico o braço para pedir ajuda a um par de asas formosas à minha frente.

— Com licença, poderia me ajudar a...

Não consigo terminar a frase, porque a visão do anjo formoso rouba minhas palavras. E de repente é como se estivéssemos a meses atrás. Olhar para Azazel, é como me sentir no passado. Ele está exatamente igual, desde os piercings até a carranca arrogante e os cabelos compridos. Imediatamente me lembro do fato de ter deixado seu carro no meio do nada, e me parece uma ideia ruim ficar por ali. Então apenas me viro de costas e começo a andar.

— Está perdida? Ainda não arranjou um carro?

A palavra me trás calafrios. Mas o tom irônico em sua voz, me diz para não ter medo. Aponto pra minhas costas quase nuas debaixo do tecido branco e fino, enquanto explico:

— Ainda não passei pela cerimônia. Inclusive, é amanhã.

— Você perdeu a da Ana.

Seu rosto parece menos duro agora. Sei que ele pode imaginar minha dor, porque segundo suas palavras, também sentiu algo parecido. E subitamente me arrependo de ter me afastado daquele grupo. Aquele grupo de pessoas tão incríveis, que em apenas um dia me fizeram sentir mais amimada que em todo o ano. Talvez eu não estivesse enterrada em tristeza e solidão se estivesse com eles desde o momento catastrófico. Az estica o longo braço, e puxa o papel que eu carregava em minhas mãos . Depois de ler, ele franze a testa para a informação nele escrita, antes de o amassar e jogar em uma lata verde de lixo.

— Ei, eu precisava disso!

A raiva sobre por minhas bochechas, me fazendo arrepender dos pensamentos bons que tive a respeito dele. Me lanço para a lata de lixo, afim de encontrar o maldito papel, mas Azazel me puxa pela cintura e me afasta. Meu rosto bate contra seu peito, e imediatamente a raiva é substituída pela vergonha. Meu coração se acelera, por algum motivo que ainda não entendo.

— Esse era o endereço da editora do Cass boba, você não precisa mais disso agora que me achou.

Chaves surgem entre seus dedos, e um veículo apita quando botões são apertados. Giro a cabeça na direção do carro vermelho, apenas para fazer com que um sorriso travesso cresça nos lábios de Az. Ele fica lindo dessa forma, mas que tipo de besteiras estou dizendo?

— Eu tenho asas, te acompanhei até sua casa naquela noite. Você não estava só.

Tenho vontade de perguntar o porquê, de forçá-lo a me dizer o motivo por trás dessas decisões de compaixão por apesar de seu temperamento difícil. Mas me calo, porque sei lá no fundo, que a única coisa que conseguiria seria irritá-lo profundamente. Me afundo no banco de couro e inspiro o cheiro cítrico de abacaxi e hortelã que o carro produz. Então viro a cabeça para janela, até que o prédio criativo entre em meu campo de visão. Os conhecidos tijolos amarelos inundam meus olhos, e eu praticamente salto do carro quando Azazel o estaciona. Ando para dentro, meio saltitando, meio pulando, mas acima de tudo, sorrindo. Eu não fazia ideia de como seria bom ver tudo aquilo novamente. Aquele lugar mágico, cujas páginas dos livros em suas prateleiras, pareciam dar vida ao local. Ainda maravilhada com o lugar, me apresso na direção do balcão de recepção. Mas como se a vida quisesse tirar onda de mim, como sempre, não alcanço meu objetivo, sou impedida por um par de asas exuberantes, jogada ao chão com força, e tudo o que faço é fechar os olhos.

— Essa garota tem um problema em andar sem esbarrar com os outros por aí.

Lanço um olhar fulminante para Azazel, e me viro logo em seguida para pedir desculpas ao garoto com quem havia esbarrado. Mas as desculpas se tornam um grito abafado, e minhas palavras saem diferentes do que planejei, quando percebo quem está de pé em minha frente.

— Metatorn!

O felino de olhos verdes me encara com diversão, retira um pelo invisível do casaco, e sorri, exibindo dentes brancos e simétricos.

— Querida Sophi.

O apelido me dá nos nervos. Az se aproxima por trás com uma cara de confuso, enquanto pergunta:

— Vocês se conhecem?

Tento não encará-lo. Tento me levantar do chão sem vacilar, tento afastar o nó que se forma em minha garganta. Mas todo o autocontrole se vai quando me ouço dizer:

— Como não conheceria, o assassino da minha irmã?

Lágrimas por asasOnde histórias criam vida. Descubra agora