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Sou a mais baixa da família. Meu irmão tem mais de um e oitenta, minha mãe beira os um e setenta. Mas por algum motivo eu mal cheguei ao um e sessenta. Já me acostumei a ter que olhar pra cima para falar com as pessoas, e balançar as pernas no ar nas vezes em que um assento é alto demais. Minha percepção do alto demais também é diferente. Mas aquele anjo com quem esbarrei... ele é alto demais. Tão alto que mal reparei nas argolas de prata ao redor de seu lábio, sobrancelha e orelhas. Só reparei quando repassei seu rosto em minha mente. Muitas vezes.

Balanço a cabeça para afastar os pensamentos, enquanto beberico mais um pouco do meu café. Observo os homens de terno ao meu redor. A atendente sorridente com asas retraídas. Não deve ser muito mais velha que eu, provavelmente trabalha e estuda. Me imagino daqui a alguns meses, levantando cedo para um turno de trabalho, pronta para sair dele até a faculdade. Mas não me vejo contando trocos de cabeça, eu com certeza me atrapalharia com isso. Existe algum trabalho que exija apenas ler?

A garota pega seu celular do bolso quando os clientes param de entrar, e remexe na tela algumas vezes. Pessoas que ainda não passaram pelo teste, não podem ter celular. Até os vinte anos somos todos iguais, não podemos ter algo como isso, que poderia ser confiscado se por acaso fôssemos banidos. Já vi minha mãe mexendo em seu celular algumas vezes, é algo interessante de se ver. Mas me lembro de minha prateleira repleta de livros, e que de fato não tenho do que reclamar.

— Olá.

Giro a cabeça para a garota que se senta ao meu lado no balcão. Ela tem os cabelos longos e ruivos na altura da cintura, olhos de um intenso castanho-mel e traços finos em seu rosto. Não tem asas, mas está na cara que com certeza vai ser um anjo em breve. Ela sorri com seus dentes perfeitamente alinhados e brilhantes, e eu apenas imito o gesto, o melhor que posso.

— Oi.

A atendente se aproxima da garota com um olhar gentil, anota seu pedido, e em seguida se retira para prepará-lo. Ainda admirada com a beleza da garota, percebo que ainda estou olhando pra ela quando se vira para mim novamente.

— Veio acompanhar alguém na cerimônia, ou só passear pela cidade?

— Meu irmão vai participar hoje, vim com ele...

A moça do balcão se aproxima com um copo grande de milkshake, o coloca à frente da garota, e se retira novamente.

— Ah, certo, então você está livre para passear comigo sim?

Concordo com a cabeça, sentindo um sorriso se formar em meus lábio. Nunca tive muitas amigas, e o fato de uma garota assim querer se aproximar de mim, me deixa feliz. Sempre fomos eu e meu irmão, na escola, nas ruas e nas festas, é bom ter outra pessoa para conversar.

— Meu nome é Sophia...

Me adianto.

— O meu é Anaita, mas pode me chamar de Ana.

Cinco minutos se passam, e descubro que além de linda, Ana é inteligente. Conversamos por tempo o suficiente para ela terminar seu milkshake, e então descemos de nossos bancos e saímos até a parte de fora do café. Anaita me leva pelas ruas largas da cidade, cheia de carros em todo lugar. Andamos pela calçada, e me distraio com a conversa o suficiente para tropeçar algumas vezes em elevações no asfalto. Ana não riu de mim em momento algum, apenas sorriu e manteve a conversa, me deixando sem constrangimentos.

Entramos em algumas lojas de calçados, outras de roupas e bolsas. Ana acabou não comprando nada, mas conversar com ela foi estranhamente reconfortante. E familiar.

— Quando vai ser seu teste?

Ela pergunta, enquanto se observa em um espelho grande, com bolsas e sapatos vermelhos.

— Em novembro.

— Nossa— ela suspira— Você e seu irmão tem poucos meses de diferença.

— Sim, mamãe quase morria com nós três...

Fecho a boca assim que a frase sai, evitando soltar mais detalhes sobre minha infância perturbadora. Mas Anaita não parece notar.

— Eu provavelmente ficaria...

Ela começa a dizer, mas não termina, porque seu telefone toca em seu bolso. Uma não anja usando telefone? Cada vez admiro mais essa garota. Ela atende séria, mas logo seu rosto adota uma expressão divertida.

— Para de ser chorão, fiz uma nova amiga, venha no Ella's conhecê-la. — Amiga, a palavra me faz borbulhar.— Não. Aham. Talvez. Tá . Certo. Cinco minutos. Tchau.

Ela fala pausadamente, respondendo as perguntas do outro lado da linha. Quando desliga, seu rosto está ainda mais radiante. Ela joga os braços para o alto e declara:

— Você vai conhecer o cara mais legal do mundo!

Sorrio com ela, porque sua energia é no mínimo contagiosa. Então me levanto do pequeno banco onde havia esperado por ela, e me deixo ser arrastada para fora do estabelecimento.

— O nome dele é Cassiade, e ele é meu primo. Ele paga as coisas pra mim, porque é dono de uma editora muito famosa, ele é incrível! Tem um carro lindo, e sempre participa das festas mais chiques, ah ele sempre me leva também, eu e aquele... asqueroso do Azazel. Ah ele é inaceitavelmente sem educação, grosso demais. Teve uma vez em que...

Anaita continua a falar sem parar conforme caminhamos para seja lá aonde seu primo trabalhe. Já me animo pelo fato de ele trabalhar em uma editora, significa que provavelmente gosta de ler. Ou gosta de gente que gosta de ler. Já gosto dele. Passamos por entre as lojas do centro, até que ficassem para trás, dando espaço para prédios empresariais. Amo a forma como essa cidade parece ter sido milimetricamente pensada e planejada. Parece até que um homem só a construiu sozinha, pela forma como cada esquina parece conversar entre si.

Agradeço mentalmente a mim mesma por ter ido até a cidade com botas confortáveis. Do contrário, eu não estaria com meus pés em um estado normal. Só paramos de andar quando chegamos ao último prédio da área comercial, o mais bonito de todos na minha opinião. Apesar de um pouco menor que os demais, aquele tinha certa... personalidade. Era decorado por plantas e tijolos à vista amarelos, cores vivas nas batentes das janelas. Parecia um lugar feliz, não chato e quadrado. Anaita empurra as imensas portas de vidro da entrada, e dá passadas largas com suas botas pretas, como se o lugar fosse sua casa. Eu a sigo, um pouco encolhida e tímida pela situação, mas ainda assim maravilhada. Porque o lugar por dentro, era ainda mais lindo e vivo do que por fora. Desenhos de monstros, princesas e reinos se estendiam pelas paredes, prateleiras repletas de livros de capa colorida decoravam todo o lugar. Até o elevador era diferente, parecia o tronco de uma árvore. Eu me sentia como uma viajante entre mundos, conhecendo um completamente novo. Estava tão imersa em meus pensamentos e admirações, que mal notei quando um corpo sólido se chocou com o meu, pela segunda vez ao dia. Mas dessa vez, não atingi o chão. Senti braços fortes envolverem minha cintura, me impedindo de cair no piso liso e escorregadio do lugar. Então senti seu cheiro, algo ardido como menta, cítrico como limão. Meu cérebro decidiu que eu já havia sentido o cheiro antes.

— Você não se cansa de esbarrar nos outros? Já pensou em olhar por onde anda?

A voz rosnada do dono dos braços ecoa por entre meus ossos, que estremecem e o reconhecem antes que eu erga a cabeça para aqueles intensos olhos azuis. Para aquele peito largo marcado debaixo do tecido fino da camiseta branca, as tatuagens negras vazando pelos braços. O garoto que havia me derrubado mais cedo. Eu só não havia me dado conta, de que ele era tão lindo quanto assustador.

Lágrimas por asasOnde histórias criam vida. Descubra agora