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Seus olhos azuis claros cruzaram com os meus, e naquele momento ambos se misturaram. Eu não sabia ao certo se queria correr até ele, na direção oposta, ou aprender a voar naquele segundo para abrir um buraco no teto. Todo o meu corpo absorveu a ansiedade esperada pelo momento, meu estômago parecia um trampolim na beira de um abismo. Cinco segundos pareceram a eternidade. O que ele faria? Sorriria pra mim? Me daria um abraço? Ou sairia pela porta dos fundos quando eu não estivesse olhando? Eu não conseguia desviar o olhar. E desde a ultima palavra, mais uma pergunta, que pronunciei, não consegui dizer nada. Ficamos congelados de frente um para o outro, aquela noite de nevasca gravada em minha mente. A noite em que ele partiu.

— Filha.

Sua voz grave e rouca era como eu me lembrava. De alguma forma, mesmo depois de sete anos, ele parecia o mesmo. Nada mais parecia real naquela sala, além daquela voz. Daquele rosto esculpido, contornado pela barba por fazer. E aqueles olhos. Quando pequena, todas as vezes em que saí com minha família para passeios, ouvia a mesma frase: "você é a cara de seu pai" . E devo admitir, é verdade. Enquanto Ariel e Abbadon eram a representação perfeita de nossa mãe, eu era a cópia de nosso pai. Desde os cabelos louros até a estrutura óssea dos dedos do pé. E os olhos, sempre reparavam em como nossos olhos eram parecidos, até pelo padrão de riscos das íris azuis-piscina.

Meu pai deu apenas um passo em minha direção, mas foi o suficiente para fazer minha cabeça girar. E então outro, e outro. E a cada passo, eu tentava criar teorias em minha mente, para explicar toda a situação. Quando ele já estava a um passo de mim, eu estava completamente rígida. Então ele passou os braços ao redor do meu corpo, e apesar do ressentimento, a saudade foi maior. A saudade me permitiu esquecer os anos em que ele havia me abandonado, e me fez abraçá-lo de volta. Talvez a mesma tenha feito o nó de minha garganta sumir, no momento em que as lágrimas começaram a rolar por minhas bochechas.

— Eu senti tanto a sua falta Sophia... me desculpa.

Não haviam palavras que eu fosse capaz de pronunciar sem gagueira, ou sem uma imensa confusão mental. Por essa razão, apenas apertei os braços contra o tronco de meu pai, tentando absorver o sentimento surreal. Ele estava bem ali.

— Tem muita, muita coisa que você precisa saber. Preciso que tenha paciência.

Algo em mim mudou. Subitamente, me dei conta de que haviam dias que Cassiade havia me prometido a verdade. E eu havia esperado com paciência, mas até quando? Quando meu pai me soltou, cruzei os braços na frente do peito, e assumi a posição mais decidida que pude com as bochechas inchadas de choro.

— Não vou sair daqui até me contarem cada detalhe.

Meu pai e Azazel trocaram um olhar rápido, e só depois disso ele concordou com a cabeça, fazendo sinal para que eu me sentasse, assim como todos os outros na sala. Andamos até um pequeno sofá em um dos cantos da parede, e nos sentamos. Meu pai, permaneceu de pé, e avisou que suas palavras poderiam me causar um certo choque.

— No princípio surgiu o ar. O vento. Nosso grupo o chama de Ele. É como uma presença, algo além da humanidade, algo que não compreendemos totalmente. Ele criou esse mundo e tudo o que conhecemos, cada ser vivo e inanimado. Então nos deu vida, autonomia e liberdade. Ele criou os seres perfeitos que um dia fomos, ates que o mal nos corrompesse. Mas um dia, depois de uma série de Reis bons e justos, um herdeiro egoísta subiu ao trono deste mundo. Ele colocava seus próprios interesses acima do bem do povo, deixando seu reino exposto aos reinos rivais. E como um bom conquistador, um rei chamado Asmodeu, aproveitou a chance para se infiltrar no reino. De dentro para fora, ele corrompeu a população, envenenou seus corpos e mentes contra o que era certo. Uma tirania se iniciou, e quando o rei se deu conta, já era tarde. Por conhecer bem seu rival, Asmodeu fez uma proposta quando viu o rei cara a cara pela primeira vez.

Meu pai se dirigiu até sua mesa, e puxando a gaveta, ergueu um livro nas mãos. Folheou as páginas, e só voltou a falar quando encontrou o que buscava.

— "Dê-me a vida de seu filho, que lhe darei seu reino de volta.". Mas o rei egoísta, pela primeira vez pensou em algo além de seu próprio bem-estar. Confuso, ele não pôde escolher. Mas seu filho, o herdeiro escolheu. O príncipe de apenas dezesseis anos, pulou da imensa varanda do castelo, e não bateu suas asas. Mas após a morte de seu filho, o rei não recebeu o que esperava. Asmodeu alegou que o pai deveria dar a vida do filho, e não o filho cometer suicídio. Por isso, o trapaceiro não devolveu o reino ao rei original, e iniciou um reinado de tirania e dor, onde gerações de anjos começaram a nascer sem suas asas, e passavam a vida para recuperá-las, recuperar algo de que tinham direito.

— Todos tinham direito a asas?

Não pude me conter, me levantei do sofá em puro espanto. Mas meu pai não se preocupou com a interrupção, apenas assentiu e continuou.

— Todos ainda tem o direito a asas. Nada feliz com a situação, Ele, o vento, nos deixou formas de modificar isso. Ele nos deixou um livro, que de certa forma prevê o futuro. Ele usou os termos de Asmodeu, e criou uma brecha para que o mundo pudesse ser salvo dessa doença tão enraizada.

Meu pai folheou o livro mais uma vez, e por algum motivo, aquela sensação estranha de perigo crescia dentro de mim, o sentimento de que algo estava prestes a explodir.

— "Pelo sangue negligenciado, por sangue será pago. Qualquer que seja, o coração puro pela linhagem do rei original, se oferecido em sacrifício pelo próprio pai, o mundo estará de volta ao que deveria."

Um sacrifício. Claro. Cassiade apoiou sua mão sobre a minha, e fixou seus firmes olhos dourados em mim.

— Esta é nossa causa Sophia.

— E foi por isso que fugi.— arrisquei um olhar para meu pai, apenas para me surpreender com a continuação de sua frase:— Nós achamos cinco pessoas da linhagem do rei original.

Lágrimas por asasOnde histórias criam vida. Descubra agora