Posso contar no dedo as vezes em que fiquei sem palavras. Nunca fui de falar muito, mas desde pequena, sempre tive uma resposta na ponta da língua. Sempre . Meus colegas de classe me consideravam inteligente, a garota racional que sempre tinha uma solução pra tudo. Sempre tinha uma reação, o que me tornava decidida e ameaçadora. Mas tudo o que pude fazer naquele momento, foi me encolher toda enquanto aquele brutamontes de asas robustas se aproximava. O homem me agarrou, e não me deu um comprimido, como sempre acontecia.
— Esse mês é especial, a primeira vez em que testamos um novo... método de transformação.
Senti calafrios percorrerem todo o meu corpo, meu estômago se revirando. O brutamontes tirou uma seringa enorme das mãos de uma mulher que eu não havia notado. Eu esperneei e me debati nos braços do anjo que me segurava, mas nada disso obteve efeito.
— Parem! Parem!
Eu não conseguia gritar. Minha garganta estava seca e colada, me impedia de falar. Quando notei isso, foi quando me dei conta de que a voz não era minha. Não era de mim que os brutamontes estavam com medo quando me largaram.
— Por favor.
O homem que me segurava, agora estendia as mãos para Azazel, que abria as enormes e altas asas em ameaça. Seu rosto lindo estava fechado em uma expressão de ódio, os músculos fartos do braço estavam completamente rígidos por baixo das marcas pretas das tatuagens. As mãos fechadas em punho, e os cabelos loiros oscilando acima dos ombros... era realmente uma visão linda. E ameaçadora.
— É só um método mais eficiente do que o comprimido, vai ativar as asas mais rapidamente, e não precisará tomar remédios ao longo dos anos.
A explicação pareceu acalmar Azazel, mas ainda assim não o tranquilizou totalmente. Afinal, o que diabos ele estava fazendo ali? Nesse instante, a consciência pareceu voltar, e por sua expressão, percebi que ele se fazia a mesma pergunta. Olhares confusos e curiosos se atiravam em nossa direção, murmúrios se expandiam pelo local. Eu só queria sumir.
— Não quero.
Minha voz soou fraca e rouca, cansada. Mas mesmo assim, audível. Toda a plateia se calou, quando o apresentador magro como um palito se virou para mim, os olhos castanhos mais arregalados do que eu poderia prever.
— Como é?
— Não quero as asas.
Eu repeti, dessa vez mais alto e claro. O sangue parecia ferver em minhas veias, o chão parecia se mover debaixo de meus pés. Meu corpo suava por dentro da beca, mas me mantive o mais firme possível. Azazel ficou atônito, me encarando surpreso com a boca escancarada. O apresentador ... riu. Então o homem que me segurava antes, voltou a segurar. Me imobilizou no chão, conforme o outro se aproximava com a seringa. Az deu um passo em minha direção, mas a voz brutal do rei ecoou por nossos ouvidos:
— Se der mais um passo, será considerado traidor do reino. As asas não são opcionais, assim como a falta delas. É o teste quem decide, não você.
Azazel permaneceu petrificado à minha frente, incapaz de movimento algum diante de tudo aquilo. De repente ele me pareceu menos ameaçador, com as sobrancelhas contorcidas, me lembrava um garotinho assustado. O anjo da seringa de abaixou perto de minha cabeça, e apoiou dois dedos em um ponto de meu pescoço. A dor lancinante me invadiu quando a agulha fina penetrou minha pele, tentei me concentrar nas cócegas que o carpete fazia em minha bochecha. Eu gritei, ou pelo menos tentei, já que de minha garganta já não saia som. Então tudo ficou escuro.
Não senti nada, até acordar. E fui do nada para a dor absoluta, quando ossos estranhos irromperam pela minha coluna, rasgando a pele das costas. Quando consegui abrir os olhos, me dei conta de que não estava mais exposta para o mundo. Estava em casa, em meu quarto... minha cama. A lucidez durou um segundo. Um segundo, até que eu voltasse a sentir os ossos crescendo, se esticando para fora de minha coluna, dilacerando qualquer músculo pele e tendão ao seu caminho. O grito se tornou mais intenso, e a dor, pior ainda.
— Está tudo bem, estou aqui!
Não era a voz de minha mãe em meus ouvidos, não eram seus braços ao redor do meu corpo. Mas minha cabeça girava demais para que eu me desse ao trabalho de abrir os olhos de novo. Eu os apertei com força, e deitei a cabeça naquele peito musculoso, me aninhei naqueles braços aconchegantes. E me mantive concentrada na dor. Era tudo o que eu tinha agora.
Apaguei e acordei cerca de quatro vezes naquela noite. E em todas as vezes, aquele corpo estava lá para me amparar. Eu não ousava abrir os olhos, parte de mim acreditava que aquilo era parte de um sonho, algo que meu próprio cérebro criou para amenizar a dor. Apesar de ter sentido seu toque, abrir os olhos me assustava. Significava tornar tudo mais real.
A dor parou quando os raios intensos do sol começaram a despontar pela janela alta de meu quarto. Me remexi na cama, ainda dolorida, mas curiosa sobre tudo. Quem estava comigo? Quem havia me tirado do palco? E que cheiro era aquele invadindo meu quarto? Sem pensar muito, joguei as pernas para o lado do colchão, e pisei no chão, tentando me manter de pé. Mas um peso extra em minhas costas, fez com que eu perdesse o equilíbrio.
— Opa, cuidado!
Quase pulei de susto quando percebi que tinha alguém comigo no quarto, alguém em minha cama! Mas para minha surpresa... era apenas Ana. Com seus cabelos ruivos armados, e os olhos dourados inchados de sono. Até mesmo dessa forma ela conseguia ser linda. Me sentei de volta na cama, com a certeza de que não havia sido essa voz que se comunicou comigo horas atrás.
— Ficou comigo a noite toda?
Puxei assunto, para evitar olhar para as penas em minhas costas, mas também pela curiosidade que me consumia. Anaita mordeu o lábio inferior, e remexeu em uma mecha de cabelo antes de dizer:
— Sim. Eu estava aqui todo o tempo. Os meninos vieram comigo, Cass está lá embaixo preparando o café da manhã.
Repeti o movimento de segundos atrás, mas dessa vez, Ana me ajudou a ficar em pé. Mantive a cabeça abaixada, sentindo o peso não só sobre minhas costas, mas também sob meus ombros. Quando ela me posicionou em frente a um espelho, senti um gelo imenso no estômago.
— Nenhum de nós teve um crescimento de asas tão rápido e brutal... mas você pode olhar, a parte ruim já passou.
O mais devagar que pude, ainda tentando fugir da realidade, ergui os olhos para meu reflexo no espelho estreito de meu quarto. E meu queixo caiu. Vi minhas asas, e automaticamente pude senti-las. Era bom. Era como um braço, só que mil vezes mais bonito. Eram fartas de penas brancas como a neve, farfalhantes como plumas. Se estendiam até depois da minha cabeça, se impunham altas e majestosas atrás de mim. Em um movimento leve, eu as balancei, como se já soubesse como fazê-lo. Elas me obedeceram, como se minha experiência fosse inegável. Eu sorri. Mas quis arrancá-las, quando lembrei daquela frase infeliz...
"Voe por mim"
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Lágrimas por asas
RomanceSophia, é uma garota doce e esforçada. Presa em um mundo onde seu destino é decidido após os vinte anos, tudo o que ela faz é garantir que pode passar no grande teste, para ganhar um par de asas e manter uma vida estável sem miséria. Mas esse pensam...