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Depois que me encantei com a beleza de minhas próprias penas, busquei ignorá-las. Afinal, eram apenas um meio de obter uma vida fácil. E com certeza, usaria esse meio de todas as formas para conseguir meu irmão de volta. Assim que abri a porta do meu quarto, o cheiro forte de ovos e chocolate me invadiu em cheio. Desci as escadas ansiosa, nada preocupada com o estado de meu cabelo ou pijama. Adentrei a pequena cozinha com Ana em meu encalço, quase dando um pulo de susto ao perceber o quanto estava cheia. Minha mãe estava sentada em um banco no balcão, Cass e Azazel remexiam frigideiras em frente ao fogão. Não era uma quantidade absurda de pessoas, mas era mais do que eu estava acostumada. Ainda me adequando ao espaço ocupado pelas asas, tentei andar até um banco sem as incendiar ou prendê-las em algum armário. Considerei um sucesso,  já que consegui andar até o outro lado do balcão sem nenhum acidente, completamente desconfortável com o silêncio e olhar penetrante de minha mãe, mas bem.

— Gosta de torradas?

Azazel tomba a cabeça para o lado ao me perguntar, enquanto despeja o conteúdo de sua frigideira em prato. Ana pula e agarra o objeto no mesmo instante, lambendo os lábios ao se juntar à nós. Abro a boca para responder que sim, e só a abro novamente quando a comida chega, para agradecer. O olhar pesado de minha mãe, quase me faz largar apetite, mas minha barriga ronca demais pra isso.

— Animada para o novo emprego Sophi?

Minha mãe ergue as sobrancelhas bem delinearas para Azazel, o autor da pergunta, quando percebe que o anjo havia acabado de usar meu apelido para se referir à mim. Queria ver a cara dela no momento em que conheceu Azazel, com todos os piercings e tatuagens, a pose exibida e as asas robustas. Ele seria o tipo de cara que minha mãe me alertaria para ficar longe.

— Não muito— admito— planejei alugar um apartamento com Abbadon quando me mudasse para a cidade, não sei bem como prosseguir agora.

Dou uma mordida no sanduíche de torradas com ovos preparado por Azazel, quase deixando escanar um suspiro quando o gosto inundou minha boca. De alguma forma, ele conseguia fazer um simples pão ficar divino. Cass continuou a falar:

— Meus estagiários geralmente se juntam e alugam um apartamento até o fim da faculdade, que eu saiba, Ana já estava vendo isso com um deles.

Anaita concorda com a cabeça, e pelo tempo que a conversa se extende, me esqueço da presença de minha mãe. Dou alguns goles no café, e mordidas no lanche, trocando palavras com Ana e Cass ao mesmo tempo. Quase parece que eu os conheço à tempos... mas é o terceiro dia em que os vejo. Eles comem suas refeições e se levantam para sair, e é apenas nesse momento que me lembro de minha mãe. Forço meu corpo para acompanhá-los até a porta, mas quando eles se vão, me arrependo de não ter ido com eles. A casa parece sufocante quando me viro em direção à minha mãe, parada com os braços cruzados na frente do peito. Minhas costas parecem doloridas, as asas mais pesadas.

— Você conseguiu.

Sua voz é quase um suspiro de alívio. A gratidão em seus olhos me faz sentir vontade de vomitar. E de repente sinto uma vontade imensa de odiá-la por não sentir falta do meu irmão. Por ficar tão feliz, ao ponto de esquecê-lo.

— Foi um erro. Escolhi as questões meticulosamente, disse tudo errado na entrevista. Mesmo assim passei.

A expressão de orgulho de minha mãe, se tornou confusão, e em seguida pura fúria. Ela ergueu os braços e os jogou ao lado do corpo, soltando um suspiro cansado.

— Eu só posso ser amaldiçoada pelos deuses pra ter que ouvir algo assim. Dois dos meus filhos não tiveram nem chances, e você! Quase desperdiçou!

Ela aponta seu dedo em minha direção, mas parece menos ameaçadora que nunca. Suas asas murchas como manto a fazem parecer menor, apesar de ser centímetros mais alta que eu. E do oposto, ergo minhas asas para parecer maior ainda, mais forte e decidida.

— Acho justo se os deuses a amaldiçoarem por não sentir sequer compaixão pelo próprio filho enterrado na sarjeta, ou pela filha morta.

Fecho minhas mãos em punhos, porque a raiva já não cabe em mim.

— Você não sabe nada sobre isso, também não sabe o que é uma vida sem asas para não desejá-las!

— Sei o suficiente sobre você, pra ter a certeza de que qualquer destino seria melhor. Mesmo se fosse na sarjeta com Abbadon mãe, ou no fundo daquele lago congelado com Isabela. Seria melhor do que estar com alguém tão morto por dentro como você.

As palavras saem como navalhas pela minha garganta, mais rápido do que posso conter. Me arrependo imediatamente, mas é tarde demais. Porém, ao lançar um olhar rápido na direção do alvo, percebo que minha mãe nem sequer demonstra sentimento algum. Nem raiva, tristeza ou desprezo . Apenas a cara de sempre. Neutra. Engulo o nó que se forma em minha garganta, e fujo para meu quarto o mais rápido que posso.

O resto da noite se torna pesado e escuro. Escolho um ou dois livros para acalmar minha ansiedade, que cresce ainda mais quando percebo a chance de viver fora de casa. Em minha cabeça já faço planos, guardar o dinheiro extra da jornada de trabalho a mais que cumprirei, procurar alguém para dividir apartamento, e quando as aulas começarem, estarei estável e com uma reserva. Claro, o plano de encontrar meu irmão ainda estava de pé, eu só precisava saber por onde começar. Sabia tão pouco sobre o sistema governamental, que nem sequer fazia ideia de com quem falar. Talvez Cass, com sua importância no mercado editorial, tenha alguma ideia de por onde começar. Mas ir contra a decisão do governo de distanciamento dos não-anjos, seria me tornar uma rebelde, seria arriscar minha segurança e provavelmente a de meu irmão também. O que fazer? Em quem confiar? De qualquer ser humano com um par de asas receberia uma grande recompensa se denunciasse qualquer rebelde? Me recostei contra a parede, incapaz de pegar no sono sem aqueles braços ao meu redor. Foi aí que percebi que além de reais, eu os conhecia.

Lágrimas por asasOnde histórias criam vida. Descubra agora