Abbadon. Meu Abbadon, meu irmão. O garoto que se escondia debaixo da minha cama para não tomar banho, que me levava para a cidade quando os livros não eram suficientes para saciar meu tédio, que me olhava nos olhos e me tirava todo o medo. Aqueles olhos. Olhos como os de Ariel, e minha mãe, o azul profundo do oceano em meio à tempestade. Ele estava diferente, algo nele parecia errado, fora do lugar. Mas ainda assim, correr até ele, e envolvê-lo com meus braços, foi tão familiar quanto esperei. Seu cheiro, seus braços ao meu redor, e a forma como ele encostava o queixo no topo da minha cabeça... era tudo o que eu precisava. Para cair em prantos. Um ano, foi quase esse o tempo que eu levei para encontrá-lo, e ainda com muita ajuda. Céus, eu era uma péssima irmã.
— Abbadon, eu... me desculpa.
As palavras se forçavam pelo bolo de minha garganta, apesar da dor precisavam sair. Eu precisava expressar o quanto estava arrependida, apesar da dificuldade que tinha em organizar os pensamentos.
— Eu não voei por você. Me desculpa, não consegui nem sequer respirar direito depois que você se foi. Não é desculpa, mas me enfiei em um poço de escuridão, e fiz de tudo para ser banida mas... — ergui as asas devagar, envergonhada— não deu certo. E-eu... eu não consegui te achar, não sabia por onde começar, então eu encontrei eles, e o papai, e...
— Sophi.
O sopro de sua voz pronunciando meu nome, era como a brisa fresca do inverno na noite em que perdemos Ariel. Era fria, firme, mas eu amava. Amava o tom, mas provavelmente odiaria a história de como sua voz havia sido modificada. Meu irmão segurou meu rosto com as duas mãos.
— Não se desculpe por nada. Eu a amo, estamos juntos, é tudo o que importa agora.
Um estalo de lucidez me ocorreu, e eu me dei conta de que Azazel e seu irmão ainda estavam no recinto. Ao virar a cabeça na direção de ambos, constatei... estavam se encarando. Não sabiam ao certo o que fazer. Pareciam duas estátuas inertes, alheias à tudo em volta. Abbadon pareceu perceber, porque sem me soltar, disse em tom brincalhão:
— Ele é real Theliel, pode abraçá-lo agora.
O irmão de Azazel, Theliel, era idêntico a ele. Ambos quase da mesma altura, cabelos loiros e pálidos, apesar do comprimento diferente, e rostos esculturais com olhos mutáveis. Isso eu já havia percebido, porque antes de meu irmão falar, o tom de azul dos olhos de Theliel era como o oceano profundo. E depois disso, se tornaram como o mais puro cristal. Como os de Azazel no momento. E com um salto, o anjo loiro saiu de seu lugar, e caiu em frente ao irmão, de joelhos. Theliel o encarou, atônito, calado por tempo o suficiente para que Azazel falasse.
— Eu não mereço sequer te olhar nos olhos. Eu te procurei, tentei voar para longe daquela cidade tóxica, mas mal sabia por onde começar. Tentei arrancar minhas asas, mas as malditas cresceram de novo. Eu nem sei o que fazer para me desculpa Theliel, mas por favor, me deixe proteger você de agora em diante.
Theliel pareceu pensativo por um instante. A tortura emocional para Azazel, fez meu estômago dar um nó. O rosto dele parecia cruel, e de alguma forma, eu sabia que nem sempre havia sido assim.
— Faria qualquer coisa por meu perdão?
A voz de Theliel, era quase idêntica à de Azazel. Eram quase cópias um do outro, com duas diferenças, o de cabelos curtos tinha piercings no rosto, e o de cabelos que caiam até os ombros não. Azazel assentiu, ainda com os olhos cravados no chão.
— Então eu quero ela.
Estendendo seu dedo indicador em minha direção, Theliel conseguiu fazer com que toda a peixaria vazia estremecesse. Eu podia jurar que havia escutado as cadeiras se mexerem quando Azazel se pôs de pé em um salto estrondoso. A única lâmpada que iluminava o salão, piscou. E Azazel pareceu ainda mais alto com as asas erguidas, como não havia feito até o momento, na presença de seu irmão. O que mais estranhei na verdade, foi o fato de meu próprio irmão se limitar a continuar me abraçando, mas dessa vez, me fazendo ficar de costas para ele. Antes que eu percebesse, seu antebraço já estava fazendo preção em meu pescoço, o outro braço se intensificando ao redor da boca do meu estômago.
— Não pode estar falando sério.
A voz de Azazel era um puro grunhido agora, um som tão bestial, que poderia ser considerado animalesco. Seu rosto pálido adquiriu um tom de vermelho, real como a fúria nítida em seu sangue.
— Estou. Falo bem sério irmão. Quero essa garota.
O braço de Abbadon, era mais que um aperto ao redor do meu pescoço agora. Era sufoco. Era desesperador, dificultava minha respiração. Mas meu irmão nunca faria algo contra mim, faria?
— A-abbadon. Está me machucando.
Forcei os dedos contra a pele macia de seu braço, tentando afastá-lo. Mas não causei efeito algum, contra a firmeza de seu membro.
— Abbadon! — chamei, dessa vez o ar me faltava.
— Solta ela.
— Então ofereça ela a mim como oferta de desculpas.
— Ela é uma pessoa Theliel, quem você se tornou?
— Prefere meu ódio à entregar essa garota em meus braços?
Por algum tempo, Azazel apenas encarou o irmão, espantado. Minha visão ficava turva, uma pressão estranha invadia meu cérebro. Eu sentia cada centímetro do meu corpo perdendo as forças, pouco a pouco.
— Sim Theliel. Eu prefiro.
A risada de Theliel, foi a última coisa que ouvi antes de tudo ficar preto.
Quando acordei, dei de cara com o céu límpido, balançando sob minha visão quase recuperada. Tentei me levantar, mas o movimento só me rendeu uma dor forte na cabeça.
— Calma garotinha, precisa ficar deitada por um tempo.
Ao ouvir a voz firme de Theliel, dei um pulo para longe. Mas Azazel estava... ao meu lado. Com a mais pura serenidade estampada nas feições. Estávamos de volta ao barco, e meu irmão, que havia me enfocado, sorria pra mim. Lancei um olhar de dúvida para Azazel, mas foi Theliel quem respondeu.
— Aquilo foi um teste. Pra ver se Azazel poderia te proteger. Foi Abbadon quem me pediu.
— E por quê?
Como se fosse o movimento mais natural do mundo, involuntariamente me coloquei atrás de Azazel, encarando nossos irmãos de frente. Não poderia explicar o movimento, nem se tentasse.
— Porque você está mais em risco do que nunca.
— E por quê?
Repeti a pergunta. Theliel respirou fundo, e olhou em meus olhos. E se não fosse pela presença de Azazel ao meu lado, poderia jurar que eram os olhos dele.
— Porque descobrimos, que os outros descendentes do rei estão mortos.
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Lágrimas por asas
RomanceSophia, é uma garota doce e esforçada. Presa em um mundo onde seu destino é decidido após os vinte anos, tudo o que ela faz é garantir que pode passar no grande teste, para ganhar um par de asas e manter uma vida estável sem miséria. Mas esse pensam...