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Mamãe decidiu que eu não deveria andar hoje. Por esse motivo, ela decidiu dirigir. Suas asas murchas se acomodam facilmente ao banco, e ela mal faz esforço para isso. Saímos de casa no primeiro raio da manhã, depois que permiti que suas mãos passeassem por meu corpo e cabelo fazendo "ajustes". A ideia de ter asas ainda é esmagadora. E ainda mais, a ideia de me perder pra sempre da possibilidade de encontrar meu irmão, piora tudo. Sinto como se fosse desmaiar a qualquer momento, como se uma pedra de uma tonelada se encontrasse em cima de meu peito. Não quero as asas. Não quero carregar o peso de ter conseguido o que meu irmão merecia: um futuro bom. Não quero viver tentando imaginar como ele está, quero ser banida como ele. E me arrastar pelo chão para encontrá-lo se possível. Eu andaria por todo o mundo, só pra saber onde ele está.

— Não vai agradecer pelo emprego? Não gostou?

A voz de minha mãe é direcionada à mim, mas os olhos permanecem na rua à sua frente. Cruzo os braços nervosa, sem saber ao certo escolher entre sinceridade e paz.

— Obrigada mãe, se eu passar, vou agarrar a oportunidade.

— Isso é ótimo. Sabe, eu pensei que você poderia se inscrever na faculdade de literatura nacional, aqui no esado de Sonneya mesmo, assim poderia usar o carro enquanto eu...

Minha mãe passa os próximos vinte minutos falando sobre a vida perfeita que planejou pra mim. Ela roda com o carro até achar uma vaga perto da praça, e não deixa de falar nem quando a mulher alta de cabelos presos em um coque nos aborda. Somente após uma pigarreada e batida de pés da moça, minha mãe finalmente se cala, e me permite ir até o camarim. Olho para trás uma última vez antes de ser escondida pelo palco, e surpreendentemente... desejo que seja a última vez que veja minha mãe.

Aparentemente, existem dois camarins. Um para garotas, e outro para garotos. O camarim em que entro, é repleto de cadeiras de plástico, assim como as que estão espalhadas por toda a praça. Três garotas já estão sentadas nelas, de frente para um grande espelho. Elas analisam suas aparências, ou discutem algo sobre cabelos e homens. Eu apenas permaneço de pé, recostada em uma parede mais afastada. Elas mal me percebem, e quando chega a hora da prova teórica, se calam completamente. Somos levadas até uma terceira sala, que fica entre os dois camarins. Lá, algumas carteiras como as que eu costumava ver na escola, estão espalhadas por todo o local. Me sento em uma mais no fundo, à espera de instruções.

— Certo, bom dia a todos.

Um homem baixinho entra quase saltitando pelo lugar, as asas finas oscilando como um véu atrás de si. O homem explicou as regras de cola, e os horários mínimos e máximos para a prova, em seguida nos informou que após o término da prova, deveríamos erguer o braço e aguardar novas instruções. Dois estalos de dedos soaram, e então, seguranças com óculos escuros e escutas nos ouvidos entraram pela sala. Quatro no total, cada um com uma pilha de papel perfeitamente alinhada. Começaram a distribuição, alternando os tipos de prova : A, B, C e D de acordo com as distâncias de carteiras. Como me sentei na última carteira da terceira fileira, minha prova é a C. São mais de vinte folhas, com três grandes questões cada. Sessenta ao todo, não é muito.

A ansiedade palpita dentro de mim, mas ainda assim, muito menos do que palpitaria se meu objetivo fosse passar. Corro os olhos pelas questões, pela tinta grossa da impressora industrial nas letras. E para minha surpresa, percebo que sei cada uma das respostas. Desde história e literatura, até matemática e física. Cada uma das respostas eu sei, assim como sei errar perfeitamente cada uma delas. Com o espírito confiante, marco todas as respostas, e ergo o braço antes que qualquer outro sequer possa pensar em fazê-lo. Quando um dos seguranças se aproxima para recolher a prova, olhares curiosos são lançados em minha direção. Exibo uma expressão vitoriosa, porque no fundo, é realmente assim que me sinto.

Sou levada para fora da sala, onde uma moça bonita de olhos verdes me espera. Ela me pergunta coisas sobre minha família e expectativa de vida, minha relação antiga com os professores e essas coisas. Mas não consigo desviar o olhar daquela cor que me causa tanto frio na barriga. Maldito verde. Isso dura mais do que esperei. Quando me levam à última prova, o sol está quase começando a se esconder atrás das montanhas.

Me mandam correr parada, fazer abdominais e polichinelos. Minha mãe se esqueceu dessa parte da prova quando escolheu minha roupa, com certeza não se lembrou das posições que eu deveria fazer. Mas na verdade, isso me ajudou. Porque meu objetivo era não passar, e da forma como me equilibrei para não mostrar nada por baixo da saia enquanto pulava estabanada, com certeza seria reprovada. Quando levaram de volta ao camarim, para banho, cabelo e maquiagem, senti a vitória dominar minhas entranhas. Eu seria banida, e encontraria meu irmão logo depois.

Depois do banho coletivo, e cerca de um quilo de maquiagem, o pesadelo começou. Fui colocada debaixo da beca azul escura, e direcionada ao meu lugar no palco. Fileiras e fileiras de jovens apavorados sentados ali. As garotas que antes fofocavam, agora roíam as unhas perfeitas e encaravam a multidão. Meus olhos seguiram até os telespectadores no momento em que me sentei, e o rei começou seu discurso.

— É um dia de alegria e pesar....

Meus ouvidos se fecharam pelos próximos minutos. Não precisava escutar aquilo outra vez, nem os nomes até a letra "S". Isso me deu tempo para... averiguar a plateia. Eu estava sentada em uma das fileiras da frente, então conseguia semicerrar os olhos para averiguar melhor quem me assistia. Então o encontrei. Exatamente como imaginei, lá estavam: Azazel, Anaita e Cassiade. O que eu não esperava, era Metatorn ao lado deles. O maldito sorria. Az ainda o encarava desconfiado, mas Cass e Ana pareciam alheios ao perigo. Minhas mãos se fecharam em punhos, meu corpo estava pronto pra saltar do palco caso ele fizesse algo perigoso. Mas a voz do apresentador tirou minha atenção, quando chegou a letra "S".

— Sam Cutbert.

Um garoto alto e moreno de cabelos enrolados se levantou ao meu lado, completamente ereto de expressões petrificadas.

— Reprovado.

O garoto foi retirado do palco em segundos. Mas dessa vez, ninguém chorou. Eu estava calma, apenas à espera de meu destino. A voz do homem soou outra vez.

— Sophia Shaya Ayerisher.

Me levantei. Sentindo os mil olhares sobre mim, o feixe intenso de luz cegando meus olhos assim que me posicionei à frente do anjo. Firmei meus pés no chão, naquele carpete vermelho elegante, apenas aguardando o selo de meu destino.

— Aprovada.

Lágrimas por asasOnde histórias criam vida. Descubra agora