Capítulo Quinze

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Millicent

— Millicent, o que houve? — minha mãe pergunta quando entro na cozinha.
Devo estar pálida, como se tivesse visto um fantasma. E foi isso mesmo. Foi tudo criado pela minha mente. Ele não estava lá. Tenho certeza de que não. Ou talvez fosse alguém parecido.
Respiro fundo tentando aliviar a tensão do meu corpo. Andei depressa do ponto até em casa, olhando para os lados como se fosse uma louca. É possível que as pessoas na rua tenham notado.
— Nada — disfarço, sentando em uma cadeira tranquilamente; aparentemente.
— Bem, imagino que essa seja sua cara de apaixonada — ela brinca, parada em minha frente, as mãos na cintura, encarando-me com um meio sorriso.
Dou de ombros, sorrindo.
— Eu estive no abrigo, mãe — conto, lembrando-me de Mariah em especial. Simplesmente não consigo parar de pensar nessa garotinha.
— Savi a levou?
— Ele não sabe que eu estive lá — comento.
— E por que você não contou a ele? — pergunta.
— Não sei — respondo sinceramente, talvez por medo de sua reação.
— Você está estranha, filha. Tem certeza de que nada aconteceu? — minha mãe insiste, agora tocando meu braço.
— Estou bem, mãe — garanto, sabendo que, se contar o que acho que vi, ela fará um escândalo.
Sem dizer mais nada, eu a deixo na cozinha e subo para meu quarto, trancando a porta em seguida. Logo meu pai estará em casa e ele não é tão fácil de convencer quanto minha mãe. Preciso estar calma.
Sento na cama e tento me controlar, reafirmando em minha mente que tudo não passou de algo criado por minha imaginação. É impossível que ele esteja aqui. Não há a mínima possibilidade. Levanto e vou até a janela, apoiando-me ao batente, observando o fim de tarde. Uso o método que a senhora Smith ensinou para controlar a ansiedade, uma série de respirações rápidas, que logo causam o efeito desejado, fazendo-me relaxar.
Ouço o celular tocar e corro até a cama, já sabendo quem é.
Há uma mensagem de Savi:
“Quero levá-la a um lugar especial.”
Mudo de posição na cama, quase como uma adolescente fazendo algo ilegal e tentando esconder dos pais.
“Eu conheço esse lugar?” — pergunto digitando devagar. Ainda tenho dificuldade em usar o teclado do celular. A senhora Smith disse que isso é normal, por causa do trauma.
“Talvez. Esteja preparada na quinta-feira à noite. Bjs.”
Encaro a mensagem, achando estranho tanto mistério. Aperto em responder, pronta para arrancar dele mais informações sobre o encontro, a curiosidade me matando aos pouquinhos.
— Millicent? — Ouço meu pai me chamar, enquanto bate à porta de leve. Eu não sabia que ele havia chegado!
Guardo o celular debaixo do travesseiro rapidamente, e ele entra no quarto, acendendo a luz na mesma hora. Pisco, a claridade fazendo meus olhos arderem.
— Pai? — falo sentindo meu coração acelerado contra o peito. Ora, quando foi que tive receio em falar com meu próprio pai?
Ele me olha desconfiado e depois para o quarto, como se estivesse procurando por algo, ou por alguém. Ok, isso é loucura demais.
— Está tudo bem com você? — pergunta ainda sério.
— Está, sim — afirmo, balançando a cabeça um pouco exageradamente para enfatizar.
— Como foi seu dia? — Meu pai leva as mãos aos bolsos, tentando parecer despreocupado, como se não estivesse fazendo uma investigação.
— Ótimo — respondo, consciente de que minha resposta não é das melhores. Mas o que posso fazer? Estou nervosa!
O rosto do meu pai então fica mais relaxado, e ele parece soltar o ar dos pulmões. Parece aliviado.
— Vou descer e falar com sua mãe. — Aponta para o corredor. — Vai jantar conosco?
— Estou sem fome, pai. Obrigada. — Forço um sorriso tentando ser gentil.
Ele concorda e acena antes de sair do quarto.
Respiro aliviada.
Acabo deixando o celular de lado e me deito na cama.
Ouço um barulho no andar de baixo e sei que são meus pais. Como sempre, minha mãe deve, neste momento, estar conduzindo meu pai até a sala de TV, acomodando-o na confortável e horrorosa poltrona cor caramelo, na qual ele gosta de se sentar para assistir sua cota diária de programas esportivos. É sempre assim; logo minha mãe lhe serve um prato cheio de comida e uma xícara de café fumegante. Ela então se senta ao seu lado, e os dois conversam sobre o dia. Na realidade, esse é o momento em que rotineiramente meus pais têm seu tempo juntos.
Ainda posso me lembrar da minha infância, quando meu pai chegava do trabalho, e minha mãe e eu o esperávamos para jantar. Depois disso comíamos juntos, enquanto ele contava algo importante. Só então papai nos permitia ir para a sala. Agora parece que os costumes mudaram.
Sorrio pensando nos dois lá embaixo, conversando sobre coisas pouco importantes, já que minha mãe odeia esportes e precisa preencher o ar com sua melodiosa voz, falando sobre a família ou, de vez em quando, sobre alguma nova receita que aprendeu. Admiro a forma como meu pai se comporta, tentando, de uma maneira sobre-humana, dar atenção à TV e a minha mãe ao mesmo tempo. Isso deve ser uma prova de amor verdadeiro.
Por um momento eu consigo me distrair e deixar de pensar em coisas ruins. Gostaria que fosse sempre assim, pensamentos ruins sendo levados por pensamentos bons, a mente nunca sendo dominada pelo obscuro. Queria poder controlar meus pensamentos; talvez, assim, eu tivesse minhas memórias de volta.
Todo o dia repassa em meus olhos; principalmente o momento em que vi minhas mãos tocando o peito de Savi, uma recordação bem-vinda, uma das vitórias de hoje. Sim, desde que acordei naquele hospital, cada pequena coisa que faço durante o dia e que me deixa feliz, acrescento à lista de vitórias pessoais. A senhora Smith faria uma boa dissertação sobre isso, embora eu não tenha a mínima intenção de contar a ela. Isso é algo que com toda certeza eu dividiria com Savi.
Aliás, onde ele me levará? Que lugar especial é esse que ele mencionou. E o mais importante; como conseguirei despistar meu pai para sair à noite. Ele dificilmente acreditará que estarei na casa de Beatrice e, na melhor das hipóteses, se ofereceria para me buscar. Não consigo nem imaginar a pior.
Levo as mãos ao rosto, frustrada. Queria que tudo fosse mais simples e fácil. Apenas poder ver Savi quando eu quiser e não ter que esconder de ninguém isso. Eu me sinto com uma adolescente revoltada, ao sair escondida pelos cantos, fugindo do pai.
Penso às vezes que seria mais prudente contar a ele e arcar com as consequências, mas o medo me impede. Não o medo por mim ou por Savi, mas por meu próprio pai. Não quero vê-lo sofrendo como vi nos primeiros meses depois do acidente. Sei que ele culpa Savi pelo que aconteceu. E tudo se torna uma grande avalanche sobre mim. Não há como fugir.
Para piorar, o que acreditei ter visto hoje levou meu grau de preocupação a um nível alto. Talvez sejam meus sonhos. Mas não contarei a ninguém sobre isso, porque todos me considerariam uma louca.
Mais relaxada, finalmente sinto o sono me vencer.
***
Beatrice tem se mostrado uma verdadeira amiga, o que eu não tinha considerado ter até então. É fácil conversar com ela sem me sentir pressionada ou exposta, como era comum quando eu tentava fazer novas amizades. Em parte, acredito que seja porque compartilhamos de um passado muito semelhante, algo que talvez tenha nos aproximado de uma maneira estranha. Eu a recebia em minha casa sempre que possível e, apesar de ela ser mais velha que eu, nossos temas de conversa são sempre muito interessantes.
Ela me contou recentemente sobre estar sentindo atração por garotas e que estava sendo algo muito estranho. Eu então percebi que realmente éramos amigas e podíamos conversar sobre nossas vidas sem que houvesse aquele peso do passado rondando nossos ombros. Era sobre futuro.
Então eu contei a ela sobre Savi. Tudo. E a reação pela qual eu não esperava aconteceu; Beatrice agarrou-se aos meus braços e chorou como uma criança, dizendo estar maravilhada pela história, afirmando veementemente que estava disposta a ajudar no que fosse preciso.
Animada, eu a convidei para me acompanhar em algumas lojas hoje pela manhã. Eu poderia fazer isso com minha mãe, mas Beatrice estava tão empolgada com meu encontro que achei que ela fosse uma boa companhia. E mais; eu realmente pouco entendo sobre moda, então a ajuda é necessária.
— O que acha de um vestido? — ela pergunta apontando para um modelo estampado em flores amarelas e roxas, algo que me faz lembrar a cortina de um quarto antigo.
— Eu pensei em algo mais fechado. — Sorrio, indicando as calças na outra sessão.
Eu estava certa; a companhia de Beatrice acabou sendo incrível. Depois que consegui escolher uma roupa que me agradasse, almoçamos juntas e, em seguida, ela me arrastou até uma loja diferente, que eu não conhecia. Quando entramos, deparei com vários tipos de acessórios para cabelo. Ou ela estava sendo irônica comigo, ou eu não tinha entendido a brincadeira.
— O que acha desse? — Beatrice apontou para uma sessão cheia de lenços, mas em especial para um rosa-claro com pequenas flores estampadas.
— Este é um lenço japonês. As flores são Sakuras — a vendedora disse, entregando o lenço nas minhas mãos. — Prove.
Um pouco tímida, retiro o lenço que estou usando e coloco o outro sobre meu cabelo, que, graças aos céus, já está crescendo. Quando termino, eu me olho no espelho.
— Ficou perfeito. Vamos levar esse! — diz Beatrice, empolgada.
Entrego-o novamente para a vendedora e vou até o caixa para pagar.
Assim que saímos da loja, vejo que há uma ligação da minha mãe, certamente querendo saber quando volto para casa. Ligo de volta para ela.
— Eu te levo — Beatrice diz depois que desligo.
No estacionamento da loja, enquanto minha amiga guarda as sacolas no carro, olho novamente as mensagens para saber se há alguma de Savi. Nosso encontro é hoje, mas não recebi qualquer outra mensagem dele. Será que desistiu?
Guardo o celular no bolso e abro a porta do carro, mas meu olhar desvia para o outro extremo da ala do estacionamento, onde um vulto passa entre os carros.
— Millie? — Eu me viro na direção da voz de Beatrice. — O que foi? Você estava olhando fixamente para aquele carro branco com os olhos apavorados.
— Eu achei que tinha visto algo — digo balançando a cabeça, entrando no carro.
Oh, senhor, eu continuo vendo-o!
***
No restante do dia, passo meu tempo livre no quarto, lendo um dos livros que comprei pela internet, um romance de época.
Meus pais parecem felizes por eu estar saindo com Beatrice, que para papai é extremamente confiável; hoje pouco me perguntaram sobre nosso passeio.
À noite ainda estou esperando por algo de Savi. Há dois dias, não tenho notícias dele, sua última mensagem foi naquela noite. Eu poderia procurá-lo, mandar alguma mensagem, mas acabei temendo que ele estivesse me evitando, ou que tivesse acontecido algum problema.
Enfio-me na cama, sentindo-me mal por ter ansiado por essa noite. Ele não veio.
A casa está em silêncio, meu quarto escuro e, como uma estrela clareando a escuridão, a tela do meu celular acende; sei que é ele. Há uma mensagem.
“Estou esperando você aqui embaixo.”
Respondo o mais rápido que consigo:
“Não vou conseguir descer.”
Aguardo alguns segundos até que ele responde:
“Ok. Abra a janela, eu vou subir.”
Desesperada com a ideia de que ele pode cometer uma loucura como essa, eu digito:
“Estou descendo.”
Como se eu já tivesse ensaiado diversas vezes, visto a roupa que escolhi mais cedo e seguro o lenço na mão, enquanto abro a porta do quarto lentamente, rezando para que meus pais não me ouçam descer as escadas.
Sinto-me como uma fugitiva e, confesso, a emoção é incrível.
Saio sorrateiramente pela porta da cozinha, deixando-a de uma maneira que eu possa entrar depois. Calço as sapatilhas e corro para o jardim, atravessando o gramado sem olhar para trás.
Sinto uma mão me puxando e, quando estou prestes a gritar, sou calada por uma mão enorme.
— Sou eu, meu amor.
— Savi! — Eu me jogo nos braços dele, abraçando-o, e depois o beijo.
— Está pronta? A moto está mais adiante. — Ele segura a minha mão e me conduz para o escuro.
Oh, estou fugindo, à noite, com um cara sexy, em uma moto!

Dissoluto - Para Sempre (livro 2 ) - Série The Underwood'sOnde histórias criam vida. Descubra agora