Capítulo Quatro

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Savi

Vejo Millicent entrar no carro enquanto seu pai fica em minha frente, encarando-me com um olhar quase assassino. Qual é o problema desse homem? Tudo bem que um pai queira defender e cuidar de sua filha, mas isso tudo é um exagero. Ele sabe que nós estávamos juntos, sabe que eu gosto dela. Então, por que continua querendo me manter afastado?
— Ela não tem culpa, eu que... — começo a falar em defesa de Millie, mas sou interrompido imediatamente.
— Não tente tirar a culpa de minha filha, rapaz. Ela mentiu para mim, mas sei que foi por sua influência. — Suas palavras me irritam.
— O senhor sabe muito bem que somos namorados! Por que está agindo como se eu fosse um completo estranho? — pergunto indignado.
— Você é um estranho, Savi! Ela não lembra quem você é, o que foi ou o que fizeram. E é por isso que quero que se afaste dela, minha filha precisa recomeçar, mas longe de você, do bar e até mesmo do Ethan.
Solto uma bufada longa de ar. Será que ele está tentando afastar até Ethan de Millie?
— Você sabe que no fundo ela me ama, não sabe?
Ele me encara seriamente durante alguns segundos, que mais parecem uma eternidade.
— A Millicent de antes do acidente te amava, e amava muito. Mas essa garota que você beijou hoje só carrega uma ferida no coração. Uma ferida causada por alguém como você, Savi.
Suas palavras me fazem congelar. Como assim alguém como eu? O que ele quis dizer com isso?
— Desculpe, eu não estou entendendo nada.
— O homem que molestou a minha menina é coberto por tatuagens, assim como você. Ele fuma, bebe, vive sem limites. Ele era legal, extrovertido e todos o adoravam. Era como um irmão mais novo, vivia dentro de minha casa e sempre a tratou bem.
Conforme ele vai narrando a história, um filme passa por minha cabeça. Tenho vontade de socar a parede só em imaginar o que a minha menina passou quando era apenas uma criança inocente.
— Quando olho para você, é inevitável me lembrar dele. Sei que é errado, mas não consigo. Realmente sinto muito, Savi, mas peço que se afaste dela. Tenho medo de que um dia ela surte ao te olhar, pois você parece com ele.
— Mas eu não sou ele, eu jamais faria mal a uma criança! Você está sendo injusto comigo! Millicent me ama, e eu a amo. Nós nos conectamos de uma forma que eu não sei explicar, mas ela nunca sentiu medo de mim, das minhas tatuagens e de quem eu sou. É um grande erro tentar nos afastar.
— Um dia você será pai, rapaz, e então poderá me entender — diz, dá meia-volta e caminha até o carro.
Fico parado durante alguns segundos, enquanto vejo o carro sair do estacionamento. Millicent me olha através do vidro e sorri timidamente antes de o carro dobrar a esquina e desaparecer. A vontade de socar algo só cresce, mas eu preciso me controlar. Preciso provar que posso ajudar Millie, e farei isso.
***
— Nossa, você está com aquela cara — Ethan diz assim que entro no escritório.
— Qual cara? — pergunto, mesmo sem querer saber a resposta.
— Aquela cara de quem está prestes a matar alguém. O que houve? — Meu irmão solta a folha que estava lendo e presta atenção em cada movimento meu.
— O pai da Millie nos pegou no flagra e...
— Diga que vocês não estavam fazendo nada errado, por favor! — Ele se ajeita sobre a cadeira giratória, nitidamente nervoso.
— Nada do que está pensando, idiota! — digo e ele solta a respiração, aliviado. — Nós estávamos nos beijando e ele chegou bem na hora.
— Não quero nem imaginar o que aconteceu depois. — Ethan fica em pé e se encosta contra a mesa. — Mas me diga, o que houve após esse flagra?
— Achei que não quisesse saber... — Dou de ombros e sorrio ironicamente. Às vezes o nervosismo me deixa ainda mais insuportável.
— Qual é, irmão! Só quero te ajudar, ou tentar pelo menos — reclama e eu penso por um momento.
— Depois de insistir muito, ele revelou porque não quer que eu me reaproxime de Millie.
Ethan mal pisca, está atento aguardando para ouvir o que vou lhe dizer e eu continuo:
— Disse que eu me pareço com o abusador dela e que, quando me olha..., ele o vê. — Meu peito dói. Meu irmão caçula fica vermelho e esbraveja.
— Mas você não é ele, Savi! Entendeu? Não carregue mais esse fardo nas costas! — diz e caminha de um lado para o outro. — Isso é errado, o que ele te disse é errado!
— Eu sei, mas é impossível não me abalar com tudo isso, Ethan! Eu mal me livrei de uma culpa por algo que nunca fiz, e agora aparece isso? Tudo em minha vida dá errado! — Também fico em pé.
— Ethan, por que você... — Eva abre a porta e para assim que nos vê. Sua feição muda ao perceber que estamos sérios. — Desculpe, eu devia ter batido...
— Tudo bem, já estava de saída. Vou conferir o estoque de bebidas junto com o Enrico.
— Está tudo bem com você, Savi? — Eva pergunta, sua testa franzida revela preocupação.
— Não, mas vai ficar — respondo e saio em seguida.
Olho rapidamente para trás e vejo Eva me olhando. Assim que nossos olhares cruzam, ela fecha a porta e eu sigo até o estoque, pois prometi ajudar o Enrico a contabilizar todas as bebidas.
***
— Você está bem, cara? — Enrico pergunta assim que me junto a ele atrás de uma das prateleiras.
— Você é a terceira pessoa que me pergunta isso em menos de quinze minutos — digo e ele fica sério, parecendo constrangido com minha resposta.
— Desculpe, não queria parecer intrometido.
— Tudo bem, não precisa pedir desculpa. Só estou irritado com algumas coisas, só isso — digo e dou um tapinha em seu ombro.
— Imagino que tenha a ver com Millicent — diz enquanto faz uma anotação em um bloco de notas. — Ah, desculpe, aqui estou eu me metendo mais uma vez.
— Fique tranquilo, você não é um estranho, Enrico. Eu só quero esquecer um pouco toda essa merda que estou vivendo nos últimos três meses. É muita coisa na cabeça, sabe? O acidente da Millie, a perda de memória dela, o incêndio no bar... — Viro-me para ele. — Sem contar a covardia que o ex-marido da Teresa fez a ela antes de incendiar o bar.
— Ele bateu tanto nela... — Enrico aperta a caneta com força. — Não sei o que serei capaz de fazer quando o encontrar, Savi. Ele espancou Teresa e depois incendiou tudo isso aqui. — Suspira frustrado, ele também sofreu com tudo o que aconteceu. Todos sofreram. — Você acha que foi ele que incendiou o bar? — pergunta e volta a contar as garrafas de uísque.
— Tudo indica que sim. A polícia já está atrás dele, parece que estão bem próximos de encontrá-lo — respondo e abro um uísque. Sem pensar duas vezes, viro o líquido em minha boca e sinto a garganta arder.
— E sobre o atentado contra Millie?
Bebo mais um longo gole antes de responder.
— A polícia tem quase certeza de que foi o homem que a violentou quando ela era criança. Juro para você que também não sei o que serei capaz de fazer se um dia me vir de frente para ele.
— Coitada da Millie. Quem diria! Agora entendo o motivo pelo qual ela não falava. Foi um choque para todos quando soubemos. — Ficamos em silêncio por alguns segundos.
Instantes depois, Teresa aparece, cumprimenta-nos e segue para a sala dos funcionários. Em seu rosto já não há qualquer hematoma, apenas no olhar é possível ler a tristeza e a vergonha que ela diz sentir sempre que lembra que foi seu antigo companheiro quem incendiou o bar.
No começo, quando ainda estava toda roxa, ela quis pedir demissão, alegando não conseguir nos olhar sem se envergonhar. No entanto, é claro, ainda que estivesse no olho do furacão, não a despedimos. Teresa não tem culpa de nada, é apenas mais uma vítima disso tudo. Mas, para evitar mais problemas, adiantamos suas férias, e ela ficou alguns dias afastada da cidade, na casa dos pais.
Após contarmos todas as bebidas, deixo Enrico no estoque e sigo para a cozinha. Teresa já está com seu avental e, assim que me vê, sorri timidamente. Ela não parece em nada com aquela mexicana ousada de meses atrás.
— Um café, muchacho? — pergunta e eu confirmo balançando a cabeça positivamente.
— Bebi quase meio litro de uísque, um café vai bem agora. — Sorrimos um para o outro.
— Aqui está... — Teresa me entrega uma xícara de café bem quente e, antes de sair, eu a detenho.
— Você não precisa sentir vergonha, Teresa. Já se passaram três meses e conseguimos reconstruir tudo. Você é tão vítima quanto nós. Agora pare de se culpar, pare de andar com esse olhar triste e perdido. — Beijo sua testa e uma lágrima escapa de seus olhos. — Eu deveria ter dito isso antes, mas você sabe, nunca fui bom com as palavras.
— Gracias, Savi.
Conversamos durante algum tempo, até o momento de abrir o bar. Assim que os clientes começam a chegar, deixo-a preparando os aperitivos e saio caminhando pelo salão.

Dissoluto - Para Sempre (livro 2 ) - Série The Underwood'sOnde histórias criam vida. Descubra agora