Capítulo Quatorze

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Millicent

Acordo assustada, com o corpo completamente suado, em meio à escuridão do quarto. Sento-me na cama e respiro fundo tentando me acalmar.
Procuro pelo celular debaixo do travesseiro, a luz da tela me orientando melhor. Levanto da cama e caminho até o interruptor de luz, acedendo-a ansiosamente. Tudo enfim fica claro e eu me apoio à parede, o aparelho ainda em minha mão, minha respiração acelerada, o peito subindo e descendo.
Eu sonhei com ele.
Sonhei com aquele homem.
Suas mãos sujas estavam sobre mim novamente, e eu não podia gritar, minha voz não saía.
Sento-me novamente na cama e olho para o celular, pensando instantaneamente em Savi; em como gostaria que ele estivesse ao meu lado agora.
Devo ligar para ele?
É madrugada e provavelmente ele está dormindo. Eu realmente não deveria incomodá-lo.
Deslizo entre as cobertas, procurando lembrar o que a psicóloga sempre recita no grupo de apoio; “respire fundo e distraia sua mente, pense em algo de que goste”.
Assim, meu pensamento voa para ele outra vez, para Savi. Como posso não me lembrar dele, de seus beijos, de seus abraços e da forma como me teve em seus braços? Está tudo aqui, marcado em minha pele.
Esforcei-me para mentir para meu pai sobre meu paradeiro hoje; doeu-me dizer-lhe que estava no grupo de apoio, sendo que na verdade estava nos braços de um homem, do homem que ele odeia. Gostaria que fosse diferente, que os dois pudessem se entender, o que sem dúvidas tornaria as coisas mais fáceis.
Ainda estou indecisa. Não sei se devo contar a Savi ou não sobre o que tenho começado a lembrar; não parece muito importante, apenas flashes de lugares e conversas. Não sei se seria importante para ele tanto quanto está sendo para mim.
Fechando os olhos, consigo ver um quarto decorado em madeira, uma cama perfeitamente arrumada e, estranhamente, quase posso sentir a maciez deles.
É algo que vivi com Savi. Eu sinto isso.
Aos poucos, meu corpo vai relaxando, minha mente rodopiando em torno das pequenas lembranças às quais me agarro como posso.
***
Pela manhã, encontro minha mãe na cozinha, olhando-me com atenção, como se estivesse a ponto de me perguntar algo.
— Está tudo bem? — pergunto desconfiada.
Ela olha para os lados, provavelmente atestando se meu pai já saiu, e então se volta para mim.
— Você esteve com ele ontem, não é?! — questiona, os olhos arregalados.
Assustada, apenas confirmo com um gesto.
Minha mãe suspira, servindo uma xícara de café puro e levando-a aos lábios.
— Seu pai está desconfiado, Millie.
— Ele disse algo? — Não posso negar que apenas o pensamento me assusta.
— Não exatamente. — Ela para por um momento, ansiosa. — Tenho notado que ele pergunta muito sobre o grupo de apoio ultimamente e até cogitou falar com a psicóloga. E, há dois dias, perguntou sobre aquele homem.
— Savi? — Engulo em seco, meu coração quase parando no peito.
Minha mãe deixa a xícara de lado e me surpreende ao segurar minha mão na sua. Seus olhos encontram os meus, e eu noto que está envergonhada.
— Sei que nunca falamos abertamente sobre sexo, Millie... — começa, e eu acho que devo estar sonhando. Sério, mãe? Vamos falar disso nesse momento? — Mas eu só queria dizer que, se você... bem, que você...
— O que está tentando perguntar, mãe? — Mordo o lábio, tentando não rir de seu constrangimento.
— Se você está feliz, filha — responde rindo, suas bochechas vermelhas.
Sorrio, apertando sua mão na minha.
— Eu estou. Apesar de ainda não lembrar, tenho certeza dos meus sentimentos por ele e, ao que parece, isso aumenta a cada dia — conto.
— Sobre seu pai...
— Não consigo entendê-lo, mãe. — Suspiro, soltando sua mão.
— Ele quer apenas protegê-la, Millie. Sei o quanto parece estranha a forma como ele faz isso, mas você precisa entender que nós, pais, não somos muito racionais quando se trata dos filhos. Acredite, a qualquer ameaça de perigo, podemos nos tornar um animal selvagem.
Franzo a testa, considerando todo esse discurso. Eu nunca realmente tinha pensado nisso.
— Não quero deixar de vê-lo. Savi é maravilhoso e o que mais quero é ficar ao seu lado — digo, virando de costas, indo até a geladeira. Não quero nada daqui, só estou procurando uma rota de fuga para uma conversa indesejada.
— Não estou contra você, filha. Estou do seu lado, entenda isso. — Ela vem até mim, tocando meu ombro e me fazendo virar.
— Eu sei — admito vencida. Envolvo minha mãe em um abraço e a beijo no rosto. — Preciso sair por algumas horas. Estou de volta antes que meu pai chegue.
— Você não pode sair sozinha — protesta, tentando me impedir de chegar até a porta. — E a terapia?
— Não irei hoje — explico, enquanto amarro o lenço floral em minha cabeça, feliz por sentir os cabelos espetando minha mão. — Tenho algo importante para fazer. Se meu pai perguntar por mim, diga que pode ligar no meu celular — e, com um aceno, saio pela porta, sorrindo vitoriosa.
***
Certamente ninguém deste lugar esperava me ver aqui hoje, ainda mais sozinha. Mas eu estava ansiosa demais para voltar, depois de ontem à noite, quando dormi novamente e sonhei com algo especial. Quando acordei, hoje pela manhã, sabia que precisava vir até aqui e nem mesmo cogitei falar com alguém sobre isso, nem mesmo com Savi.
Depois de pagar o táxi, dando graças pelas economias com que minha mãe tem me ajudado, entro devagar, procurando por alguém que possa me ajudar.
Encontro a mesma moça que vi no dia em que estive aqui. Ela parece me reconhecer, pois vem até mim.
— Millicent — diz sorrindo. — Que bom vê-la. Onde está Savi?
Disfarço olhando para os lados.
Droga! Sou péssima em atuar.
— Ele não pôde vir hoje, mas eu vim em seu lugar — digo, abrindo o maior sorriso que consigo, tentando ser simpática. — Gostaria de conhecer mais desse lugar.
A moça me olha desconfiada, mas então sorri, parecendo não ter encontrado qualquer risco ou periculosidade em mim. Sou inofensiva para todos do abrigo.
— Estou um pouco ocupada neste momento, mas se quiser pode ir até o parque onde as crianças estão brincando. Lembra onde fica?
— Sim, é claro. Obrigada — despeço-me dela rapidamente e sigo pelo longo corredor, prestando atenção nas placas de cada sala. Berçário, quarto das crianças, biblioteca...
Ouço algumas risadas e gritos assim que chego ao final do corredor e, ao sair pela porta lateral, dou de cara com uma dúzia de crianças correndo pela grama. A maioria ainda é bem pequena e, enquanto as observo, reflito se elas sabem de verdade o que fazem nesse lugar, o que houve com suas famílias e, pior ainda, qual será o destino de cada uma.
Espero que não. Que nada disso recorra a mente delas. Encosto-me à parede para olhar melhor e acabo encontrando Mariah, sozinha, sentada debaixo de uma árvore, brincando com uma boneca.
Caminho até ela, desviando das crianças brincando, e me sento ao seu lado sem que a pequena perceba.
— O senhor Junkes me prometeu bolinhos. Eu gosto quando ele me faz bolinhos de chocolate e avelã — ela fala, mudando a voz, tentando interpretar a boneca.
— Eu prefiro nozes — comento e, de repente, quando ela olha para mim, parece feliz.
— Millie! — Mariah deixa a boneca no chão e me abraça, seus pequenos bracinhos rodeando meu pescoço.
Inalo seu cheiro doce. Parece chocolate.
— Savi veio com você? — pergunta, os olhos atentos.
—Estou sozinha hoje. Pensei que poderíamos brincar juntas.
A boca de Mariah se abre, e ela solta um gritinho, dançando no lugar.
— Quero que conheça Jane, minha boneca. — Ela se apressa em fazer as honras, colocando a boneca loira e gorducha nas minhas mãos. — Ela gosta de bolinhos de chocolate com avelã e também gosta do senhor Junkes, mas não conte a ninguém; Jane só gosta dele pelos bolinhos — conta cochichando em meu ouvido.
— Oh, eu compreendo o sentimento de Jane. Bolinhos são irresistíveis — falo, tentando arrumar os cabelos desgrenhados da boneca.
***
A hora seguinte passa tão rápido que mal me dou conta quando uma das moças do abrigo chama Mariah para o almoço. A menina se despede de mim com um abraço.
— Millie, um dia você pode me fazer bolinhos de chocolate com avelã? — pergunta antes de ir.
— Eu prometo. Farei bolinhos melhores que os do senhor Junke — respondo sorrindo.
Quando ela se vai, eu me vejo sozinha novamente. E é bom, porque posso pensar. Precisei vir até aqui depois do sonho que tive com Mariah, onde a pequena estava perdida e pedia por socorro, chamava meu nome.
Não tenho vínculos com ela e poderia ter ignorado o sonho, como algo comum. Mas a angústia que se apoderou de mim e, principalmente, o desejo irredutível de vê-la trouxeram-me aqui.
Mariah é uma criança tão amável, tão doce. Eu poderia estar ao lado dela por horas e mesmo assim o tempo não passaria.
Eu precisava garantir que ela estava bem, mesmo sabendo que tudo não passava de algo da minha cabeça. E, agora que sei que ela está perfeitamente bem, talvez eu consiga me sentir melhor.
Fico de pé, olhando para a enorme árvore fixamente. Não consigo desviar meu olhar dela.
De repente, como uma folha caindo, algo surge em minha cabeça. São palavras de Savi.
Somos nós dois, aqui mesmo, juntos. Estou com minha mão em seu peito, sobre a tatuagem, enquanto ele me conta sobre o abrigo. É só isso, depois tudo some. Mas lembrei. Eu me lembrei de cada palavra, de sua pele quente sobre a minha mão, dos meus lábios em sua tatuagem.
Emocionada, saio do parque, atravessando o corredor e a recepção em euforia.
Deixo o abrigo, indo para o ponto de ônibus mais próximo.
Agradeço aos céus quando, menos de cinco minutos depois, o ônibus chega, e eu me sento perto da janela.
Coisas boas acontecem!
Meu coração está latejando contra o peito, com uma chama de esperança surgindo dentro de mim. Tudo voltará a ser como antes.
Oh, Savi...
Distraída em minha alegria, olho pela janela e vejo uma figura estranha parada no ponto onde eu estava. Um homem de sobretudo, os cabelos ruivos e aquela expressão... que eu jamais poderia esquecer.
É ele!

Dissoluto - Para Sempre (livro 2 ) - Série The Underwood'sOnde histórias criam vida. Descubra agora