novembro 2018 pt 2

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Henry estava dormindo no meu sofá novamente, os pés pendendo para o chão pela falta de espaço, um braço debaixo da cabeça e o peito subindo e descendo devagar no ritmo da sua respiração.

Ele tinha me carregado pela estrada naquela manhã, e por alguns minutos eu não me importei dos vizinhos fazendo perguntas ou as pessoas nos olhando torto.

Não, naquele momento tudo em que eu conseguia pensar era no vazio embrenhando-se nas minhas entranhas.

Anna tinha passado aqui depois de fechar a padaria, ninguém tinha denunciado o Henry, era como se aquilo não tivesse acontecido.

Como se meus demônios estivessem apenas na minha cabeça.

Fecho meus olhos relembrando as palavras de Joe.

Eu era fraca, eu era doente, eu não servia para nada.
O que estou fazendo aqui?

Me pergunto no meio do escuro silencioso de uma casa que poderia ser meu lar em um outro mundo.

Um mundo onde eu não fosse quebrada.

Me levanto devagar do chão gelado, dez passos e eu poderia acordar meu melhor amigo, a primeira pessoa a quem eu poderia confessar meus piores pesadelos, dez passos e eu poderia contar a Henry porque meu ex marido me odeia.

Mas ele me odiaria também... Ele me julgaria. Porque eu sou uma puta mentirosa!

Henry Cavill é um homem bom demais, o tipo de homem que desiste de tudo por aqueles que ama, o homem que poderia estar preso agora por minha causa. E eu não mereço esse tipo de esforço.

Eu não mereço essa família.

É com isso na cabeça que caminho de volta ao meu quarto, a mala já estava feita sobre a cama arrumada como estava desde quando chegamos, o prato de comida que ele tinha me trazido ao jantar estava do lado intocado.

Ele só estava dormindo porque o cansaço ganhou? Se não tivesse estaria na minha porta falando o quanto eu sou forte? Que ele ia me proteger? Como fizera durante o dia todo conforme as crises de choro começavam e acabavam.

Sento ao lado da mala pegando o caderno de anotações e a caneta respirando fundo.

"Primeiramente, eu sinto muito Henry, por não ser a pessoa em quem você pensa ter confiado. Sinto muito por ter envolvido você e sua prima nesse bolo de problemas que não parece ter fim.

Você arriscou sua tão amada padaria porque eu sou uma idiota, nunca vou me perdoar por isso

Joe... Ele não é o único culpado nessa história, eu também sou.

Sou culpada por não saber lutar contra ele, sou culpada por deixar ele controlar minha vida, minhas escolhas e meu corpo. Você não entenderia Henry, as coisas que..."

Paro de escrever negando com a cabeça e arranco a folha de papel começando outra utilizando apenas o primeiro parágrafo.

"... Eu sempre vou amar você e sua Anna. Vocês sempre serão minha família.

Com todo meu amor e arrependimento.

Amélia"

Limpo minhas bochechas me levantando e pego minha mala caminhando para fora do quarto. Paro ao lado do sofá, meus dedos chegam a se esticar para afastar aquele cacho de cabelo pendido na testa dele, mas o rosto ainda tenso me impede, se ele acordasse eu não conseguiria fugir.

—Amo você... —sussurro beijando dois dedos colocando sobre meu coração partido. Deixo a carta em cima do peito dele com cuidado e o olho uma última vez antes de virar e caminhar em direção a porta.

O frio da madrugada de um dia de novembro atinge meu rosto assim que coloco os pés na rua.

Eu tive um ano de felicidade. Um ano no paraíso.

Mas como todas as pessoas podres por dentro, descobriram meus pecados e agora era hora de me afastar da perfeição.

Caminho pela calçada de pedra observando as casas escuras, com meus vizinhos adormecidos em seus leitos. Eu sentiria falta de todos ali, do casal que de vez enquando era visto dançando pelados pela casa, da senhora que tinha muitos gatos, do casal de idosos que passeava todas as noites até a fonte da praça e jogava uma moeda juntos. Eu sentiria falta de tudo ali, o cheiro de ervas que vinha das barracas agora fechadas, os gritos das crianças correndo dos pais, até mesmo da pequena barraca de cachorro quente que ficava perto do ponto favorito de Henry naquele lugar.

Eu era uma criança esforçada, passava dias e dias tentando ser perfeita, sempre ganhando apostas e prêmios, sempre insistindo, tudo para conseguir o amor das pessoas a minha volta. Mas aqui, ao chegar nessa cidade, todas as minhas imperfeições fizeram eu encontrar minha família, ao menos pelo tempo que isso me foi permitido.

Mas aquilo tinha acabado, meu tempo tinha acabado e isso era tudo que eu teria da felicidade.

[...]

Encarar a antiga casa de luxo ao descer do táxi foi como receber milhares de agulhadas no estômago, e saber o motivo de estar ali amortecia meus sentidos.

—Aqui senhora. —o taxista me entrega minha mala e agradeço com a voz sufocada depois de pagar a corrida.

Londres estava fria e chuvosa, refletindo minhas emoções como se eu não as pudesse esconder mais.

Alguma vez pude?

Respiro fundo enquanto pego a chave no meu bolso, o objeto pesava mais do que deveria, e abria a porta entrando.

A decoração chamativa era ao mesmo tempo ridícula e sufocante, estar ali era sufocante, ouvir os passos apressados pelas escadas era sufocante.

Eu mal podia respirar...

—Eu sabia que você voltaria um dia. —as palavras de minha mãe chegam aos meus ouvidos e a encaro no último degrau da escada. Um robe de seda envolvia a figura magra e elegante, uma expressão de convencimento tomava as feições do rosto livre de rugas. — Finalmente percebeu que seu lugar é aqui?

Um dia ela diria que sentiu minha falta?

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13º dia

—Se divirtam crianças. —Anna beija minha bochecha enquanto seguro a porta a observando sair da minha casa.

E de repente eu queria que ela ficasse ali.

—Se divirta também. —consigo desejar antes de fechar a porta, e no momento do click dela encostando no batente o clima mudou dentro da minha pequena casa.

—Amelia. —fecho meus olhos sentindo meu corpo tremer com a voz dele baixa e rouca perto de mim.

Me abaixo colocando o Kal no chão fazendo carinho na cabeça dele.

—Sim?— pergunto ainda sem me virar mordendo meu lábio com medo do que poderia acontecer ali.

Eu sabia que aquela noite era a última da minha vida antiga.

—Precisamos conversar... —uma mão segura meu ombro afastando meus cabelos do pescoço e fecho meus olhos tremendo.

—Sobre? —tento manter a voz controlada e falho miseravelmente.

—Pensei naquela sua proposta sobre eu virar leiteiro. —o que?— você iria querer meu leite mesmo?



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Dolce Pandoro - ConcluídaOnde histórias criam vida. Descubra agora