Capítulo 3: Uma História Para Peixe-boi Dormir.

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Me virei na cama, sem tirar os olhos do livro enquanto lia uma história sabendo cada próxima palavra antes de a ler. Memórias passavam em minha cabeça com imagens claras de momentos específicos, rostos e sons. Tentei impedir minha cabeça de fazê-lo, mas mesmo que parasse já era tarde demais.

Quando se tem doze anos, não existem muitas preocupações nesse planeta. Mesmo no início do ano, com aulas acontecendo, às vezes eu dormia na grande casa chique e rica da família de Sam, e às vezes ele passava o final de semana comigo, vovó, vovô, e Rita. Não podíamos brincar muito na casa dos pais de Sam, sempre foram muito preocupados com a segurança do filho, e, por isso, não nos deixavam fazer qualquer coisa que exigisse mais movimento que assistir televisão.

A diversão era, no entanto, só o que existia na casa de meu avô. Passávamos o dia inteiro brincando de amarelinha, pega-pega, esconde-esconde, jogávamos com os videogames que Samuel trazia, mesmo que a tevê perdesse sua imagem periodicamente. Dormir, infelizmente, era inevitável, mas mesmo aí havia algo.

Meu avô obviamente já tinha sido um homem alto e forte, era evidente até na forma de andar, mas agora estava magro e com a barriga mais protuberante devido a idade. Seus bigodes, uma vez castanhos, agora eram brancos, e sua cabeça possuía pouquíssimo cabelo. Seu sorriso antes de contar uma história, porém, nunca deixou de ser o mesmo.

— Vocês conhecem a história das bandeiras? - Dizia ele.

— Sim! O senhor já nos contou! - Respondíamos eu e o pequeno Sam.

— Então vamos, a branca de neve era... - Ele iniciava.

— Não! Não! Conta a das bandeiras mesmo, vovô! - Eu respondia, com Samuel chateado de lado.

— Tudo bem, então vamos lá!...

"Um pirata é sua bandeira, e uma bandeira é um aviso, mas nem sempre foi assim. No século dezessete viveu um homem chamado Emanuel, um homem muito corajoso e muito procurado: Fazia parte de uma nova geração de piratas. Em uma de suas viagens, se deparou com a marinha, e aí desapareceu. Sempre que achavam Emanuel Wynn e seu barco, eles desapareciam em um clarão de luz, para reaparecer após ter atacado. Emanuel se tornou confiante do poder que carregava e estampou essa confiança em sua bandeira: Jolly Roger, o mensageiro da morte, era retratado por uma caveira com dois ossos cruzados, e abaixo dele, uma ampulheta. Quando finalmente pegaram Emanuel, os marinheiros, tripulação e afins, viram a ampulheta desaparecer do barco, sem deixar vestígios."

O próximo parágrafo, inevitavelmente, tinha a voz de meu avô em minha cabeça.

"Um homem chegou a ser chamado de Rei dos Piratas. O mais rico deles, o mais bem sucedido. A bandeira de Black Bart era temida em todo o mundo, e talvez por isso ele a trocou tantas vezes. Porém, uma vez, dizem que Bartholomew encontrou-se em uma emboscada. Centenas de barcos por todos os lados cercavam o Royal Fortune com canhões apontados, mas ele não fez mais que desembainhar a espada e a sacudir, e com o dizer de uma palavra o próprio mar afundou os navios inimigos. Black Bart colocou a espada em sua bandeira, na qual ele sozinho, empunhando o objeto, ficava em pé sobre duas caveiras que representavam grupos inimigos. Bartholomew morreu empunhando sua espada, mas dizem que ela não o seguiu ao túmulo, assim como sua alma também não."

Não consegui ler mais uma palavra, a memória de um barulho de madeira rangendo me assustou, e logo eu acabei largando o livro, me deixando perder em pensamentos.

Meu avô levantou da cama onde estávamos eu, Sam e minha avó, juntos, abraçados. Minha irmã, Rita, estava confusa e com mais medo que Samuel e eu juntos, mas não queria deixar meu avô sair.

— Deixe, garotinha, vamos... Já eu volto, tudo bem? Prometo. - Ele disse, pegando a menina no colo e a deixando nos braços de minha avó.

De repente as memórias ficaram turvas, minha cabeça estava tentando me impedir de reviver o drama de algo que aceitei há muito tempo, mas eu insisti. Sons, não de tiro, mas de metal batendo contra metal. Minha irmã se levantando dos braços de minha avó e correndo porta afora, e eu tentando fazer o mesmo. Um barulho alto e fino como um grito sendo interrompido... Silêncio. Um raio e um trovão, e uma noite naquele quarto, trancados, foi o que seguiu até a próxima manhã.

Aceitar não é esquecer, e muito menos significa que não dói mais. 

Os que Mergulharam em LuzOnde histórias criam vida. Descubra agora