A Mulher Do Fim Do Mundo

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Colérico esse tempo, totalmente doentio.

Ao ponto que ousei olhar para ela, e ouso ainda mais ao falar sobre ela.

Em deleite ao infinito cheio de vazio em sua infinitude, ela apareceu como a única estrela irradiando luz sobre tempos tão sombrios, o âmbar de seus cabelos se mistura com o sangue nas suas roupas. É de uma violenta natureza as formas de sua beleza.

Mesmo sem boca ela prende o tempo com uma única mordida, prende junto de sua afiada língua. Português, diga-se de passagem, ela também fora colonizada por aqueles que cruzaram o mar de angustias mil. Ela é pura desgraça, nasceu pra ser reduzida à pandemia, para alguns pandemônio, para ela... Só a verdade.

Em meio ao caos ela desatina a transparecer a contragosto notas de sofrimento, mesmo que a cólera, sinônimo de sofrer, seja feita boneca em seus passeios. Ela sempre esteve passeando por aqui, nas margens, nas orlas de pobreza que banham nossas cidades.

Ela em resumo é a morte pela doença que poderia ter sido evitada, mora em todo valão de esgoto que existe nesse país, mora na bunda de todo Aedes Aegypti que tá voando perto de nossas caras. Ela tem a humanidade como sua companheira de morada desde que o homem é Homem. Por vezes some e reaparece desacreditando tudo que achavam saber sobre ela, como fruto da natureza, igual nós, ela é dotada de uma incrível capacidade de se reinventar. Peste.

A mulher, portadora da vida e da morte, se curva diante dos homens, portadores de nada além de uma ganância imoral. Ela conhece seu poder e sabe muito bem como usá-lo, sabe que pode aniquilar essa humanidade com um estalo. Opta por não fazer. Existe alguma compaixão na peste, ela chora junto ao filho que enterrou sua mãe, que fora arrebatada desse inferno por ela mesma. Existe alguma solidariedade em tudo isso que ela traz, na indignação nos movemos, nas lágrimas salgadas sentimos o gosto de vida, no velório fazemos despedidas que jamais ousamos fazer com o morto gozando de vida.

O luto é o néctar espesso que ela guarda em seus seios, é o extrato do chorume cadavérico de todos nossos mortos enterrados na cova rasa, na vala comum, na gaveta das desimportâncias. Ao nos acudirmos em seus braços é o luto que ela tem para nos oferecer, nos alimentar, dar algum sabor, mesmo que fétido, para as circunstâncias que ela normalmente nos encontra, quando não somos vítimas da sua implacável arbitrariedade, estamos aos prantos pelo o que ela é e por quem ela decidiu levar. Choramos somente pela sua própria natureza...

Ela tem nome e sobrenome, tem mil rostos, e muito mais tetas, ela é a Peste, ela é a Cólera, ela é a doença que aflige todos os enfermos, ela é a mulher do fim do mundo, ela é a mãe que irá parir o nosso fim.

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