20.

650 58 29
                                    

O som abafado dos passos dos servos nos corredores fez com que Perséfone acordasse cedo. Sonolenta e preguiçosa, sentou-se na cama, sentindo um arrepio quando os pés tocaram o chão frio de mármore. A luz do luar iluminava parcialmente o quarto e a lareira, quase apagada, ainda aquecia o cômodo.

Ela chegou a tomar um banho, colocando uma muda de roupa limpa e fresca. Embora o corpo realizasse os hábitos adquiridos com a nova rotina no Submundo, a mente permanecia distante, vagando para o jantar da noite anterior.

Sentia-se estranha, mas de um jeito bom. Quando fechava os olhos, conseguia lembrar com detalhes do calor do toque de Hades, de sua voz melodiosa, dos orbes ônix profundos e, principalmente, da sensação quente que sentia a cada troca de olhares.

Confusa – essa era a palavra perfeita para descrever seu estado. Eram muitas sensações, muita informação para alguém tão jovem e inexperiente.

Claro que já havia recebido propostas de cortejo e até mesmo casamento, em um passado que agora parecia longínquo. Por mais que negasse, era dona de uma aparência rara. A pele bronzeada brilhava na luz do sol e os cachos que pendiam do alto da cabeça eram excepcionalmente adoráveis. Perséfone cresceu em um ambiente cercado por uma tensão madura. À medida que seu corpo desenvolvia e criava curvas magníficas, os deuses – até mesmo os comprometidos – voltaram seus olhos para aquela beleza tão pura e angelical. Ela não era como Afrodite ou Hécate, que tinham nas feições uma ligeira malícia.

Não. Seu jeito simples que deleitava os olhos masculinos.

Apesar das propostas e tentativas de cortejo por parte dos rapazes – algo que Deméter simplesmente abominava, afinal, era completamente a favor da castidade –, Perséfone não sentia nada. Havia apenas a consternação, nada a mais. Nunca sentira a sensação das mãos trêmulas, do coração pulsante, ou qualquer outro clichê clássico da literatura. Não havia uma emoção ou energia que a movia.

Mas ontem foi diferente.

Lembrar das palavras do deus dos mortos, tão sinceras e diretas, fez com que um arrepio questionável percorresse seu corpo. Não conseguia ser indiferente a ele. Hades não era como os outros. Não havia malícia em seus olhos, muito menos segundas intensões; apenas uma profunda admiração e respeito.

Era encantador. E aqueles olhos escuros sempre a deixavam sem fôlego.

Uma euforia quase incontrolável nasceu em seu âmago. Perséfone não conseguia identificar ou nomear aquilo, mas sabia que era uma sensação boa, como se ela flutuasse e estivesse em órbita.

Não havia como negar: Hades causava coisas nela.

Coisas que adoraria ignorar.

Coisas que a assustavam.

Ainda cheia de pensamentos, inspirou o ar, dando uma última olhada no espelho do tocador. Desta vez, mesmo com o frio, armou os cachos em um penteado ornamentado e muito bem-feito no alto da cabeça. O vestido branco escorria lindamente até os calcanhares, marcando a cintura e, nos ombros, o xaile colorido pesava, protegendo-a do frio do Submundo. O rosto, como sempre, estava livre de qualquer vestígio de maquiagem. Não gostava e era desnecessário. Os cílios grossos emolduravam os lindos orbes verdes e a boca era naturalmente rosada.

Encarou-se, por um breve momento, uma sensação de insegurança formando em algum local do subconsciente.

Queria sentir-se bonita.

E, de alguma forma, queria que ele a considerasse bonita.

Sacudiu a cabeça, na tentativa de afastar os pensamentos para longe e, mais cedo que o habitual, retirou-se do imenso quarto, começando uma lenta caminhada pelo corredor. As cortinas estavam abertas, revelando o lindo céu, e ela aproveitou aquele pequeno tempo para admirar os pequenos detalhes do castelo. Tudo era lustroso e lindamente polido. Não havia uma poeira sequer nos móveis ou nos carpetes. Percebera que os servos realmente eram bons no que faziam.

FlorescerOnde histórias criam vida. Descubra agora