21.

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Ao acordar, Hades sentiu como se não dormisse há dias. Seu corpo estava demasiado lento e ele tropeçou algumas vezes antes de assumir o controle das pernas. O que incomodava, de fato, era a cabeça – parecia que algo havia explodido ali dentro –, e teve que fazer algum esforço para se acostumar com a claridade do quarto, resumida apenas na luz da lareira parcialmente acesa. Com grunhidos, procurou por uma muda de roupas antes de enfiar-se no banheiro.

Esperou pelo aconchego do banho quente, mas o que veio a seguir o pegou desprevenido. A água caiu, gélida, no topo da cabeça e os olhos ônix arregalaram-se enquanto espasmos corriam pelo corpo.

Ainda assim, mesmo com o banho frio, sentia-se sonolento enquanto vestia e penteava o cabelo escuro para trás.

O cansaço se abateu mais quando colocou os pés no corredor, lembrando do trabalho e da quantia de pergaminhos que o aguardavam. Pôs-se a caminhar, perdido em pensamentos, até a saleta particular.

Tudo estava exatamente como deixara – excepcionalmente organizado, os móveis lustrosos e os inúmeros pergaminhos espalhados pela superfície da mesa. Com um muxoxo desanimado, Hades começou a trabalhar, analisando cada papel, fazendo anotações aqui e ali, a cabeça prestes a explodir.

Se ao menos as coisas fossem mais fáceis. Se talvez Zeus não fosse um completo babaca ao proibir sua passagem ao mundo dos mortais, não estaria sofrendo esse tipo de provação. Afinal, poderia ter conquistado Perséfone sem levá-la ao Submundo, e talvez Demetra não estaria completamente surtada, privando os humanos das plantações – e ele, Hades, não teria tanto trabalho assim.

Ou quem sabe não.

Demetra o odiava e era a favor da castidade, então, no fim das contas, a deusa surtaria de qualquer forma caso Perséfone resolvesse ficar com ele.

Os pensamentos não ajudaram muito. Apertando as têmporas, colocou toda sua atenção no pergaminho que relatava a sentença de um homem que morreu afogado na própria banheira – um caso trágico e sem graça –, até ouvir o som de batidas hesitantes.

— Entre. — a voz saiu rouca, mas o interesse brilhou nos olhos quando a figura imponente rompeu pela porta voando nas sandálias aladas. Hermes fez a habitual reverencia e cumprimentou o tio com um aceno de cabeça. A expressão no rosto, como sempre, era indecifrável. — Como vai? Espero que me traga boas notícias.

O mensageiro arqueou as sobrancelhas.

— Boas, de fato. Mas só para você.

Como sempre, de forma mágica, um rolo pairou em frente ao rosto de Hades, flutuando magicamente. Esticou os dedos e desenrolou.

A mensagem era curta com a caligrafia pouco jeitosa.

Hades,

Fiz tudo o que pude.

Reuni alguns deuses na Cúpula e debatemos a questão do desaparecimento de Perséfone – evidentemente, não disse que você era o responsável e ninguém pareceu saber qualquer coisa; todos concordaram em procurá-la. Garanti a Demetra que a traríamos de volta. Ela não pareceu muito convencida, mas se acalmou e as plantações voltaram a crescer e os desastres climáticos sumiram – talvez seu trabalho diminua em alguns dias.

Sabemos, porém, que é questão de tempo até que o caos retorne.

Resolva logo o que tem a resolver. Você tem dois meses – foi o máximo que consegui. Depois disso, serei obrigado a dizer a Demetra onde Perséfone está.

Cordialmente,

Zeus.

Hades suspirou pesadamente, atirando o papel na lixeira próxima. Dois meses. É lógico que queria mais tempo, mas, tendo em vista as circunstâncias, até que estava razoável.

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