Prólogo

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   Eu me lembro claramente do frescor da brisa e a forma como o orvalho na grama e nas folhas da grande macieira do pátio embelezava o abril da pequena North Hill School, à leste de Manhattan, no Queens. Era primavera e as primeiras flores desabrochavam.

Me lembro de vê-lo balançar as perninhas no banco, abaixo da grande árvore. Os cabelos pretos, tão lisos, caíam em seu rosto curvado. Eu me aproximei, e seus olhos castanho-escuro, como duas pequenas jabuticabas fora da luz do sol, me olharam com curiosidade. 

— Por que não vem brincar? — perguntei, mas ele nada respondeu. O som de crianças correndo e brincando no pátio se juntou harmoniosamente com seu silêncio.

Seu nome era Nicolas.

Ele era o sinônimo personificado de pureza. Como nenhuma outra criança, sua alma pareceu se encaixar perfeitamente na minha, desde aquela fria manhã de poucas palavras e infinitos sentimentos. 

Nicolas tinha nove anos e era extremamente quieto, apesar disso havia uma inteligência acima do limite em sua mente juvenil. Ninguém superava suas capacidades em matemática ou seus dons de oratória, incrivelmente desenvolvidos para sua idade. Nossos dias foram pincelados como uma aquarela ao estarmos sempre juntos durante os recreios e em sala de aula. Em pouco tempo, Nicolas e eu nos tornamos melhores amigos. 

Adorávamos a aula de literatura inglesa. Chloe Johnson, nossa professora, sempre nos recitava poemas dos grandes escritores como Shakespeare e Victor Motta:

"Quero ficar assim, embriagado; na sensação de estar contigo, nos caminhos que nunca percorri".

Nós nos entreolhávamos em meio ao tom melódico das palavras, como se pudéssemos compreender o real sentido delas. E sorríamos, como se a alma tivesse plena certeza que decifrava cada sílaba.

Mas havia algo em Nicolas que eu nunca pude ser capaz de compreender. Entender as lágrimas daquele menino tão pequeno e frágil sempre foi difícil demais para uma criança de sete anos, tão inocente e ingênua como eu. Tudo que eu sabia é que vivíamos realidades diferentes demais para serem palpadas. Enquanto eu sempre tive o aconchego de meu irmão e minha tia, Nicolas parecia desamparado; lamentavelmente abandonado à própria sorte. Não obstante, eu reconhecia os resquícios da dor profunda que se escondia nas entranhas de sua vida, mas eu nunca pude desvendá-la ou solucioná-la.

— Foi o seu pai de novo? — perguntei.

Mas nenhuma palavra saiu de sua boca. Ele apenas balançou a cabeça em um sinal positivo deixando que os raios do sol iluminassem intensamente a nódoa ao redor de seu olho. Aquele era o segundo hematoma no mês, adornando seu olhar amargurado.

Eu lhe estendi uma maçã da árvore esperando que sentir o gosto dela pudesse arrancar-lhe algum vestígio de alegria, mas Nicolas sequer a pegou.

— Por que ele fez isso? — questionei então, ouvindo seu longo suspiro.

— Eu estava mexendo nas maquiagens da minha mãe — respondeu — Ele ficou muito bravo, porque disse que é coisa de mulher.

Nos olhos de sua mãe, eu podia enxergar aquela mesma consternação e angústia. Algo como uma tristeza profunda que abraçava inteiramente cada átomo de seu corpo e a sufocava num grito mudo. Ainda assim, ela nunca hesitou em abrir os braços para Nicolas, recebendo-o com beijos calorosos e um sorriso brilhante, no fim da aula. Às vezes, era acompanhada por um garotinho idêntico à ele, que ficava junto a barra de sua saia com um olhar acanhado e uma chupeta.

Ela era magra, pequena, mas seu fardo parecia gigante.

De tempos em tempos, eu também a via com hematomas e havia dias que seu sorriso desaparecia mais rápido. Até o momento em que não o vi mais. Não vi seus dentes brancos ou seus cabelos negros na altura dos ombros, nem seus hematomas.

A mãe de Nicolas um dia não apareceu. 

Assim como ele.

— Nicolas não vem mais para a escola? Ele sumiu — eu reclamei à professora Johnson após exatas duas semanas de sua ausência — E estou com o carrinho dele, ele esqueceu comigo.

Eu ergui o carrinho vermelho em miniatura para Chloe, esperando que ela pudesse dar-me qualquer resposta. Mesmo em meio a agitação das crianças que saíam da sala para o intervalo, eu pude ouvir seu suspiro longo e pesado. Então ela puxou uma cadeira, sentando-se, e deu dois tapinhas nas próprias pernas.

— Vem aqui, deixe-me brincar com você — disse.

Fui para seu colo, deslizando o dedo pela rodinha travada do carrinho.

— Nicolas é um garotinho especial — proferiu ela por fim, acariciando meus cabelos com a mão livre. E aquele era o motivo pelo qual tudo sem ele parecia sem graça, pensei. O gramado era menos verde e o céu mais acinzentado; e eu sabia que não era só pelas novas cores quentes que o Outono trazia... havia mudança dentro de mim.

— Um dia vocês voltarão a se ver — completou.

— Quando? — Voltei o olhar para seu rosto ao perguntá-la, e então vi o que havia de mais triste nele: a desesperança.

— Algum dia...

Mas o que Chloe nunca havia mencionado em suas aulas de literatura inglesa, era o tema solidão. E só mais tarde fui entender o que Victor Motta dizia em seu velho livro de poesias: "Somos duas pontas de flechas, disparadas do infinito, que não se encontrarão".

Era setembro, e assim como as folhas perdiam sua vivacidade e se desprendiam da macieira, Nicolas também se desprendeu de mim na estação de outono da vida. Foi quando o frio rigoroso chegou. Gostava de acreditar que os nossos ser-flecha um dia fisgariam o mesmo alvo novamente e perfurariam a cortina concreta da distância e do tempo que nos separava. Porém, Nicolas havia partido.

E conforme os anos se foram, eu logo percebi que já não precisava mais esperá-lo voltar.

WalkerOnde histórias criam vida. Descubra agora