Capítulo 3
No dia seguinte, na parte da manhã, segui até o pequeno e rudimentar centro do vilarejo, novamente sozinha.
O chão de terra batida se estendia por todo o local, e além das casas simplistas, uma ou outra se destacava na multidão, também havia tendas e lojinhas distribuídas aqui e ali.
Uma floricultura, uma tenda com sacos repletos de sementes, feijões, arroz e ervilhas, outra vendendo sapatos, tecidos ou vasos. Nada em quantidades generosas, com o valor alto o suficiente para fazer inúmeros clientes pechincharem por um preço menor. Eu mesma já tive que adicionar pertences próprios para conseguir comprar da loja de roupas. Eliel estava precisando urgentemente de botas e uma capa e por sorte, eu havia guardado um par de luvas boas e sem nenhum remendo, e felizmente valeu a pena porque ele faz o bom uso delas até hoje.
O movimento no centro era pouco no horário em que escolhi vir e à medida que fui me aproximando para verificar as mercadorias, conferi minha lista mental de compras e balancei sutilmente o saco de moedas na minha bolsa de pano. Cada vez que o tilintar do metal se tornava menor, era um aviso e um passo mais próximo de passar fome.
— Com licença, vou querer seis latas de feijões. — Anunciei ao andar até uma barraquinha.
A mulher, de no máximo 40 anos, cabelos grisalhos e rosto redondo me avaliou por segundos desagradáveis. Pela linha retorcida da sua boca, parecia estar lutando entre se ofender com a minha presença ou aceitar meu dinheiro.
Os murmúrios já haviam começado aqui?
— Seis latas de feijões, senhora. — Reforcei meu pedido, os dentes cerrados.
— Tome. — Me jogou as latas e guardou o dinheiro consigo em um gesto bruto. Logo, marchei para longe dali com as feições endurecidas e fechadas.
Quando os murmúrios sobre Eliel e eu começam, é quando somos tratados com hostilidade e irritação, sem contar que o verdadeiro perigo aparece.
Me encaminhei para a próxima loja, de carnes. Caro demais e tive de desistir da compra. Me doeu também, não conseguir levar mais um pote de tinta para Eliel, a cor lembrava encarar o litoral no auge do verão.
Na loja de ferramentas, comprei o último saco de dormir. O vendedor com a mesma “simpatia” da loja anterior, mas não me importei com nenhum deles e nem com o tratamento de merda.
Assim que estou prestes a deixar o lugar para trás, ouvi a movimentação de um minuto para o outro fervilhar. As vozes passaram a ruir umas sobre as outras e o centro vazio se ocupou com clientes e vendedores ansiosos por lucrar. Era minha deixa para sair, mas hesitei ao captar a presença de uma singular dupla.
O cheiro do dinheiro e a malícia era esculpido nas feições e roupas de couro. Reparei à medida que circulavam pelo local que pediam por informações e quase caí de joelhos ao ouvir a menção de um garoto com as características de Eliel.
Contudo, não saí às pressas do local. Contornei uma das barracas e fiz o impossível para engolir o pavor crescente. Enterrei fundo e fiz minha melhor expressão entediada. Não tinha tempo para surtar e precisava agir logo.
O homem no qual me aproximei devia ter no máximo 50 anos, se o cabelo quase grisalho na altura do queixo e o rosto marcado por linhas grossas nos cantos dos olhos e testa, fosse um indicativo. O corpo era grande e bem forte, carregado de lâminas, e exibia uma carranca que afastava qualquer um que olhasse na sua direção. Um mercenário, sem dúvida.
— 4 moedas de ouro, é tudo que tenho. Preciso atravessar a muralha. — Disparei de uma vez, o semblante firme e obstinado, no fundo querendo implorar para que não negasse a meu pedido.
O homem não deu nenhum lampejo de surpresa, repulsa ou qualquer emoção. Inexpressivo, levou seus olhos azuis claros até os meus.
— Eu ouvi sobre você. — Pisquei, essa não era a resposta que eu queria. O dinheiro ainda estava na palma da minha mão, intocado.
— Não importa, vai me levar até o outro lado da muralha ou não?
— Ouvi que é a vadia que tem um filho mestiço. Um garoto que controla a própria sombra. — Meu autocontrole se esticou feito uma corda fina de um violino. Eu arrancaria sua língua se não precisasse da sua ajuda.
Quem mais sabia ali? Só dez dias aqui, droga! Já havíamos conquistado ficar 2 meses em um lugar sem chamar atenção.
— É sua última chance. Sim ou não?— O dinheiro se fechou na mão dele. Ótimo. — Partimos agora. — E sem esperar por uma resposta, cravei minhas unhas no seu braço e nos conduzi até em casa, sempre atenta para ver se ninguém nos seguia durante o percurso.
Não demoramos para chegar até Eliel. Cruzamos a porta de entrada e o menor, assim que captou a presença estranha comigo se tornou névoa e sombras e o que mais me impressionou foi a agilidade de uma sombra irregular se enroscar em volta do pescoço do mercenário. Era como se uma verdadeira mão, de carne e osso, se apertasse ao redor da traquéia do homem.
O mercenário tossiu.
— Eli, filho, ele está conosco. — falei em voz alta, com orgulho pela sua atitude rápida de defesa ao dar a informação. — Solte-o. Precisamos partir. Vamos até o papai.
— Fascinante, garoto. — O homem soprou, o rosto avermelhado e pela primeira vez com um lampejo de emoção.
Rosnei em aviso.
— Tenho conhecimento da disposição das cortes e já estou informada do perigo. Sua tarefa é nos manter seguros e vivos até chegarmos na Corte Noturna. — Proferi.
As sombras sumiram e Eliel se tornou visível em um piscar de olhos. Nos encaramos por breves segundos silenciosos e eu não precisei fornecer maiores informações, ele entendia meu tom autoritário e rapidamente me ajudou a preparar nossa mochila para sair.
O mercenário arrumou sua postura na porta e esperou.
Juntei latas de comida, peguei meu mapa surrado e desenhado à caneta e lembranças de uma voz sexy, roupas de frio, lâminas e água. Tudo para caber na minha bolsa de pano que levaria nas costas.
Quanto tempo até alguém vender a nossa localização e eles chegarem até nós? Quantos dias de viagem? Quais as possíveis rotas para evitar ameaças fatais? As perguntas começaram a pipocar.
Enrolei Eliel em um manto e joguei as chaves de casa fora ao deixar a prioridade e seguir para a muralha.
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|Corte de Sombras, Pesadelos e Esperança|
Fanfiction~Corte de Sombras, Pesadelos e Esperança 🌠✨ "A noite mais maravilhosa da existência humana de Gillian aconteceu ao lado do mestre-espião da Corte Noturna. Para ela, nunca mais haveria a chance de outro reencontro, porém os meses se passaram e ela s...