Escondida na despensa de casa, choro copiosamente. Crianças podem ser realmente más quando querem. Por que nasci feia? Se tivesse nascido bonita, Valentina, com seus cabelos loiros e olhos redondos e azuis, não iria rir de mim. Não me chamaria de bolinha de arroz, sem olho ou gringa.
Através do vidro da conserva de pepino, meu reflexo distorcido só me deixa mais triste. Meu corpo magro e pequeno só faz com que minha cabeça pareça ainda maior. Os cabelos, negros e lisos que mamãe me obrigou a cortar chanel, me deixam feia. Os olhos, tão puxados que mais parecem dois riscos em meu rosto, são a marca da minha estrangerisse, a marca que não sou daqui.
Sinto falta da nossa viagem à São Paulo no verão. Naquela cidade, rodeada por pessoas das mais diversas origens, me senti parte daquilo tudo. Um pontinho chinês num mar de tantos outros pontinhos estrangeiros-brasileiros. Agora, aqui, na zona rica de Porto Alegre*, onde todas as crianças são iguais, sinto-me mais deslocada que nunca.
Ouço o som de passos e rapidamente me escondo atrás de um cesto com panos. Poucos segundos depois, um menino entra na despensa. Parece ter uns 12 anos, muito velho se comparado aos meus sete e procura por algo nas prateleiras abarrotadas de mantimentos. Seus cabelos escuros eram curtos e arrepiados e seus olhos castanhos eram cobertos por longos cílios.
Inclino meu corpo para frente em uma tentativa de ver mais do guri* bonito, porém meu pé bate na cesta e faz um barulho. Imediatamente, escondo-me, mas já é tarde demais, ele me viu. Corada de vergonha por ter sido pega na flagra, saio do meu esconderijo.
Sento-me no chão da despensa e o desconhecido me acompanha, sentando-se ao meu lado. Ele não comenta nada sobre eu estar espionando-o, e eu fico quieta sobre isso também. Em meio ao silêncio, percebo que o choro, que antes caía intenso, agora desce calmo por minhas bochechas. Ao me ver limpando as lágrimas, o menino pergunta:
— Por que tu tá chorando?
— Porque nasci chinesa e, por causa disso, sou feia e todo mundo ri de mim. — digo triste.
O desconhecido para e me analisa com os olhos atentos. Depois de alguns segundos, dá de ombros e diz banalmente o que teria um significado importante para mim por muitos anos:
— Sei lá, eu te acho bem bonita — e continua, como se não tivesse acabado de roubar uma batida do meu coraçãozinho de sete anos — Tu me ajuda a achar um pacote de pão de forma? A tia pediu para eu trazer, mas não estou achando.
Aponto o dedo para uma prateleira atrás de nós e, depois de pegá-lo, vamos juntos para a cozinha onde minha mãe arruma a mesa e meu irmão observa-a. Ao nos ver chegar, ela abre um sorriso carinhoso e diz:
— Que bom que tu achou minha outra filha pelo caminho, querido! Já ia chamar a Soso para fazermos um lanche. Filha, esse é o Gabriel, o amiguinho do César.
A partir daquele dia, meu coração foi roubado pelo menino de olhos castanhos. Porém, ele nunca mais reparou em mim.
* Porto Alegre: capital do Rio Grande do Sul, onde Sofia nasceu.
*Guri: o mesmo que menino.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Proteção - Sob o céu de Santa Maria
ChickLit"Quando os sentimentos são reprimidos por muito tempo, tornam-se algo descontrolado." Sofia, uma estudante de Direito orgulhosa e dona de si, acabou de terminar um namoro, com um soco bem dado na cara do ex. Merecido diga-se de passagem. Seu irmão m...