Capítulo 1 - Sofia

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Sentada no sofá, vejo a interação entre Dominga e o namorado dela. Estamos eu, a Bella, Aninha e o casal vinte, Domi e Pedro, na sala da república assistindo televisão.

Ele a olha com uma veneração que raramente vejo entre casais. Acho que Matheus nunca me olhou assim, mas nunca o olhei desse jeito também.

Meu coração aperta quando lembro que já tive esse sentimento por alguém. Porém, quem tinha meu coração, em nenhum momento, retribuiu.

Me mudei para Santa Maria*, me afastei, namorei, mas nada foi capaz de me fazer esquecê-lo. Acho que alguns amores tu não supera, tu apenas aprende a viver com a dor de não tê-los.

Acreditei que tinha superado isso com Matheus, porém, vendo Dominga e Pedro juntos, percebo que qualquer coisa que eu tinha com meu ex não chegava nem perto disso. Ele foi apenas uma pequena neblina tapando quem havia roubado meu coração de verdade.

Minha amiga Bella, ao notar meu olhar divagador, segura minha mão firme. Apenas de me olhar, já sabe em que, ou melhor, em quem estou pensando. Ela e a Jo são as únicas pessoas que ouviram minha história com Gabriel.

Embora considere todas as gurias* da república como minhas irmãs, essas duas me viram na pior. A Bella e a Jo foram as primeiras a chegarem aqui e puderam observar de camarote como eu reagia cada vez que achava alguma coisa dele no apartamento.

O apartamento onde vivemos agora era do meu irmão e Gabriel quando fizeram faculdade aqui. Logo após eles se formarem, vim para cá, e os primeiros meses foram recheados de lembranças de que esse lugar foi dele antes de ser meu.

Estava determinada a superá-lo, então, desde que cheguei em Santa Maria, nunca mais voltei para Porto Alegre. Sabia que lá encontraria meu antigo amor. Era impossível evitar, já que minha família era tão próxima dele. Não os julgo, sei muito bem como é difícil não se encantar com aquele seu sorriso doce de piá*.

Vendo Dominga e seu namorado Pedro juntos, pego-me imaginando como seria se eu tivesse conseguido me declarar para Gabriel tantos anos atrás. Será que ele retribuiria meu sentimento? Ou será que me dispensaria na noite seguinte como o vi fazendo com tantas outras gurias ao longo dos anos? Sei que não sou seu tipo. Sempre que via as mulheres saindo do quarto de hóspedes que meus pais mantinham para ele em nossa casa, percebia uma coisa que todas elas tinham em comum: eram lindas e loiras. Possuíam pernas compridas que meus 1,50 não me permitiam ter e cabelos loiros e olhos redondos que minha descendência chinesa nunca me daria. Definitivamente não me encaixava em seu padrão de transas sem compromisso.

Contudo, para ser sincera, sei que nunca iria me contentar com o título de ficante apenas. Talvez, o melhor para mim fosse continuar as coisas como platônicas. Não sei se aguentaria ganhar o mundo em uma noite e no dia seguinte ter que seguir minha vida sem ele. Se já é difícil esquecê-lo agora, depois de tê-lo seria impossível. 

Meus amigos conversam na sala, porém apenas parte de mim acompanha-os, o resto ainda pensa em Gabriel. Em meio as provocações entre o casal, Dominga e Pedro, e as gurias, escuto Aninha largar uma resposta, rebatendo uma provocação de Bella:

— Que isso guria, tô namorando e feliz. — fico surpresa com sua constatação. A loira sempre foi discreta, então nem desconfiei que estava saindo com alguém. Isabella, com toda a sua alma fofoqueira, logo pergunta o que eu também queria saber:

— Tu tá namorando? Como assim? Anda escondendo o namorado de nós é? — A cacheada diz rindo e não posso deixar de concordar internamente. Me impressiona como todo mundo come quieto nessa casa. Mesmo sabendo que quem faz assim almoça e janta, minha alma tagarela jamais me permitiria tal feito.

O barulho da campainha interrompe nossa conversa. Pensando que era o entregador de pizza, ando até a porta, ainda um pouco distraída, enquanto falo:
— Já basta a Jo de peguete secreto. Tu também, Aninha? Ninguém mais fala nada nessa... — minhas palavras morrem na minha boca quando percebo que, definitivamente, não é o motoboy do Ifood.

Como se fosse uma miragem, ele sorri, e me perco em seus olhos. Ao mesmo tempo que continua igual, está tão diferente. Uma barba rala sombreia seu maxilar forte e lhe dá um ar mais maduro, contrastando com seu sorriso de piá.

Seus ombros preenchem o terno como poucos caras conseguem fazer e me pergunto se ainda tem o corpo malhado que me inspirou tantos devaneios durante minha adolescência. Contudo, a maior mudança que percebo nele é algo que não consigo explicar. Alguma coisa o transformou de adolescente gato para um homem formado que tem consciência do efeito que exerce nas mulheres. Parece confiante, dominante.

Enquanto analiso-o, vejo que ele faz o mesmo comigo. Seus olhos correm por meu rosto e corpo, e ajeito minha postura para o modo briga imediatamente. Nada lhe dá o direito de me ignorar por todos esses anos para depois aparecer e me olhar desse jeito.

Gabriel abre um sorriso para minhas roupas e, nesse momento, percebo que não estou nada arrumada. Minha camiseta branca folgada com estampa do Pato Donald, provavelmente o motivo do riso, está bem longe de qualquer conceito de chique. Minha calça de yoga confortável contrasta com seu terno e, nesse momento, fico desejando ter me arrumado mais. Não é todo dia que teu ex-amor bate na porta da tua casa, porém, ao mesmo tempo, sei que não merece minha produção.

Desde que meus olhos se encontraram com os dele, nenhuma palavra saiu da minha boca, o que, para quem me conhece minimamente, é muito incomum. Ao notar meu desconforto, Bella me salva.

— César, tu veio! — ela exclama vindo abraçar meu irmão, que está parado ao lado do melhor amigo. Embora já conheça César a muito tempo, tendo inclusive ficado com ele algumas vezes, é a primeira vez que vê Gabriel. Minha amiga não parece perceber que está ao lado do cara que xingou tantas vezes por ter me feito chorar e agradeço mentalmente por isso. Isabella, com todo o seu instinto protetor, poderia acabar falando demais.

Os olhos de Gabriel ainda estão fixos nos meus e começo a ficar desconfortável. Determinada a mostrar para ele que mudei e não me abalo mais com sua beleza, digo com a voz confiante e firme:

— Imagino que vocês tenham vindo falar comigo. Vou só pegar a bolsa e a gente já sai.

Com uma velocidade impressionante, corro para o quarto e pego minha bolsa. Antes de pôr o celular dentro dela, mando uma mensagem para a Bella prometendo explicar tudo mais tarde. Em menos de cinco minutos, já tínhamos saído.

*Santa Maria: cidade no interior Rio Grande do Sul (RS) conhecida por ser um centro de universidades *guria: o mesmo que menina*piá: criança pequena, menininho

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*Santa Maria: cidade no interior Rio Grande do Sul (RS) conhecida por ser um centro de universidades
*guria: o mesmo que menina
*piá: criança pequena, menininho

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