Corte dos Espinhos

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     Não há beleza na morte senão o seu fim.

     Corro, corro, corro. Como um animal ferido, como um sobrevivente e um esquecido. Um marginalizado às sombras de um passado que ruiu com as areias da loucura, corro, fujo e me vou para longe. Tropeço em troncos, pedras, arranho minhas mãos e minhas canelas. O ar é veneno em meus pulmões, meus músculos não querem responder. Mas fujo. Para muito longe. 
Para que ele não me alcance.

     Paro depois que sinto o ferimento fisgar, uma dor-anzol que me puxa para a realidade. Atrás de uma enorme árvore frutífera, consigo perceber melhor o enorme rasgão na altura das costelas. As marcas de garras eram fundas e meu sangue acobreado pintava a grama verde, macia e fresca. Como era nos jardins de minha casa. Como era quando fui ao Calanmai, quando conheci Artha, como era quando nos deitávamos para contar estrelas e nos amarmos no céu noturno.
     Um galho quebra atrás de mim, alguns bons metros atrás, mas me ponho a fugir de novo. Correr, escapar, sobreviver. É um predador e me quer morto, penso constantemente. É um predador e não vai me ouvir, não quer racionalizar. Quer se alimentar e eu sou a caça. E preciso sobreviver.

     Corri aquelas mesmas florestas quando pequeno. Passei por cada caverna e bebi de cada rio, conhecia cada árvore pelo nome. Eu e Artha caçávamos por horas e horas, até termos comida o suficiente para o tributo e alguns bons meses. E agora estou correndo. Estou morrendo na mesma terra que me viu crescer, pronto para ser abatido por uma fera irracional, ou ao menos tento me convencer de que é.
     Tento me convencer de que nunca o vi, mais jovem e mais esperançoso, dançando de aldeia em aldeia, sorrindo e batendo palmas ao som de nossos instrumentos, girando e rodopiando com donzelas por dias. Tento me convencer de que é apenas uma besta sem escrúpulos, sem racionalidade ou a menor noção de certo e errado. Tento me convencer de que é apenas um monstro.
     Tento me convencer a não acreditar que sempre foi um.

     Eu derrapo em um barranco, o rugido ensurdecedor a sangrar meus ouvidos enquanto ouço seus passos correndo ravina acima, para me cercar ou surpreender. A dor está muito além do que eu posso suportar e eu sei que vou morrer logo. O pensamento faz minha garganta fechar e as lágrimas correrem livres, menos desesperadas do que minhas pernas, trêmulas pela fraqueza e os diversos arranhões.

     Queria entender o que houve. Eu sei parte da história, claro. A Quebradora da Maldição nos abandonou pelo Grão-Senhor da Noturna, e desde então a loucura o fez sucumbir. Mas as palavras que correm no vento diz que ela está tão feliz. Tão bem. Que a Corte Noturna, com suas bestas e sua eterna e profunda escuridão a acolheu como uma semelhante. Sempre achei que ela não era daqui, quando senti um aroma diferente no Calanmai, antes que o Grão-Senhor da Noturna a salvasse, quando eu mesmo iria fazê-lo.
     Ela era linda, a Quebradora da Maldição. Magnífica. Tão linda quanto a própria terra que nos sustenta, tão graciosa quanto um jardim infindável. Ela era luz, mas não a nossa. Não a luz que cresce e aparece entre as folhas, a luz que amadurece as flores. Ela era  a lua, e a primavera não cresce à noite. Talvez ela esteja melhor lá.
Talvez seja melhor para onde eu vou. 

     Sim, talvez seja. Para a primavera sem paz, sem sofrimento, onde a tinta é fresca nas artes e no povo, onde a música toca do nascer ao por do sol, e segue tocando sem nunca falhar. Onde eu posso correr livre e indistinto, onde posso amar Artha sem ressalvas. Onde não terei dor. Nem medo. Onde eu poderei sentir as flores e não os espinhos, onde haverá vida.
     Passos pesados me obrigam a correr mais, a ir apenas um pouco mais longe. Só um pouco mais, eu penso, enquanto o odor pungente da besta invade meu nariz, sua respiração pesada como a brisa de um apocalipse. Tropeço e me arrasto, rolando outra ravina. Devo ter quebrado alguma coisa, não consigo mexer minhas pernas. Estou perdendo muito sangue, estou morrendo. Mãe, estou morrendo na minha terra. Tenha piedade, eu imploro, tenha piedade. 

     Me arrasto para perto de uma árvore e repouso em suas raízes grossas e aparentes. Tusso sangue, muito sangue. Consigo ver meu osso saindo da perna, uma ponta marfim manchada de cobre, e choro mais. Apenas um pouco mais. Choro pela minha morte, sofro meu próprio luto calado, agarrando a terra que amei com meus dedos, querendo ficar, permanecer com ela. Ser um com ela. 
     Não deveria estar acontecendo. É só uma besta. Deveria nos proteger. É só uma besta. Deveria nos abrigar, deveria fazer algo por nós. É só uma besta, deveria fazer mais por nós, deveria nos amar e deveria amar esta terra. É só uma besta, é só uma besta, não deveríamos ser caçados. Meu corpo fraqueja e meus pulmões pesam, é só uma besta. Estou morrendo. Ele está na minha frente, é só uma besta, vejo seus dentes, é só uma besta. É só uma besta. 

     Que o Caldeirão lhe salve. Ouço a voz de Artha e ergo a cabeça para o céu, lembrando de seu rosto antes, antes de tê-la achado morta, antes de ver a besta suja com seu sangue. Antes de começar a correr. Penso em seu sorriso. Que a Mãe lhe segure. Passe pelos portões e sinta o cheiro da terra imortal de leite e mel. Não tema o mal. Não sinta dor. Vá e adentre a eternidade.

     Não há beleza na morte senão o seu fim.

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