Amarras, Laços e Nós

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   Cassian gostava de muitas coisas. Gostava de armas poderosas, gostava do combate, do cheiro acre do sangue inimigo em suas lâminas... eram muitas, de fato. Mas acima de (quase) todas elas, Cassian gostava da calma noturna de Velaris.
   Gostava de namorar as estrelas. Na Corte dos Sonhos, ainda por cima. Mais brega impossível e Cassian sabia. Apenas não se importava o suficiente. Preferia o silêncio esmagador do tapete escuro pontilhado de diamantes de luz que qualquer outro comentário. Até abandonara os trajes de batalha, usando uma pesada túnica negra com desenhos em prata. Pés descalços.

   E quando chegou a uma das sacadas descobriu que não era o único a gostar daquilo. Uma presença tão esmagadora quanto o céu noturno também gostava daquela quietude. Talvez pela semelhança que carregavam. Um poder mudo porém visível; algo de titânico, brutal e ainda assim, tão lindo quanto um universo.
   Não falou nada ao se aproximar de Nestha. Lado a lado. Cruzou os braços acima do peito e respirou fundo, sentindo o cheiro do frio, da noite, da cidade... e de Nestha. Desnecessário dizer qual exigia mais do autocontrole de Cassian. Os olhos avelã brilharam quando encarou uma constelação.

   — Não faz seu estilo.

   A voz dela cortou o ar frio como uma lâmina indestrutível e invisível. Sempre assim. Nunca um tom abaixo, nunca uma nuance a mais. Nunca. Sempre a mesma rispidez impassível, sem brechas. As mesmas muralhas. Cassian resmungou algo para si antes de virar apenas os olhos para a mulher.

   — Continue o raciocínio.
   — Estar aqui. — Ela não gesticula. Não fazia o estilo dela. O vestido longo e negro, que deixava os ombros livres e cuja borda parecia ter sido mergulhada em estrelas mais brilhantes que as do céu, moldava as curvas suaves e firmes. — Estar calmo.
   — Sou uma bomba relógio para você?

   Negativo. Para Nestha, Cassian era um vulcão dormente. Sempre temível, sempre uma presença a ser temida, respeitada. Fúria engarrafada. Ajeitou a postura e ergueu mais o queixo. Nenhuma estrela naquela noite ousava brilhar mais que os olhos de Nestha.

   — É o que se espera de um general.
   — Ah, sim. — Cassian segura um sorriso, meneando em concordância. — De fato é. Mas não sou general por estar sempre alerta. Rhysand me fez general por achar que eu controlo ambos os lados. E é uma das poucas coisas que concordo com ele.
   — Faz isto toda noite?

   Era estranho que uma pergunta fosse feita com um interesse negativo, nulo. Mas Nestha conseguia tal proeza. A mais velha das Archeron parecia ter visto tudo, de bom e de ruim. E, dado o que passou, era difícil de acreditar no contrário.
   Mas Cassian passava a barreira. Não via apenas a elegância brutal e gélida, como uma arma viva e incomparável. Não. Havia ali algo, uma semente, por menor que seja, que pesava sentimento. Que queimava, com intensidade profunda.

   — Todas as noites.
   — No que pensa quando as encara?
   — No hoje. Nunca no passado, nunca no futuro. Hoje e apenas hoje.
   — Lhe traz paz?
   Cassian inclina a cabeça, e um sorriso puro coroa seus lábios.
   — Sempre.

   Como se já tivesse as respostas que queria, Nestha vira-se novamente para a cidade e para o céu. O general exala pelas narinas, e o vapor condensa ao atingir o ar frio. Andou até estar a um palmo de distância da mulher. Conseguia sentir seu calor, escutar seu coração batendo. Trincou os dentes, negando os instintos, até notar que os nós dos dedos de Nestha estavam brancos.
   Cassian cheirava à sangue e metal. Seus olhos eram guerra e suas mãos eram fúria. Marcadas por destruição e morte. Mãos que ceifaram vidas por séculos a fio. E no entanto, Nestha confiava naquelas mãos mais que todas as outras. Recusava com veemência cada pensamento que cruzava sua mente e porventura tinha o general envolvido. Isto fazia com que eles fosse cada vez mais... frequentes.

   Ambos presos. Em amarras. Nós poderosos que os atavam ao passado, nós que não conseguiam arrebentar. Cordas que os consumiam e os destroçavam. Quantas eram as vezes que Nestha acordava no escuro, pálida, sem uma gota de ar nos pulmões. Quantas e quantas vezes não tinha vindo àquela varanda e encarado as estrelas para lembrar a si mesma de que não estava mais lá dentro. De que era real. Tudo.
   E quantas não foram as vezes que Cassian a observou, atento e firme, monitorando seus movimentos como uma gárgula. Silencioso, angustiado. Querendo erguer todos os dedos e não podendo levantar nenhum. Rosnou para si, um som gutural que pareceu baixo, mas estremeceu Nestha. Por fim, suspira.

   — Elas me fazem lembrar.
   — Do quê?
   — De que a paz existe. E de que não importa o quão destruído, o quão fragmentado eu esteja... — Nestha o encara profundamente. Ele engole em seco. — Sou merecedor dela.
  
   Estavam a centímetros. Poucos. Nestha novamente vira o rosto, embora o corpo estivesse no sentido de Cassian. O illyriano vence a distância, ousando erguer um toque acolhedor no braço direito de Nestha. Não há recusa. A outra mão. A enlaçando, carinhosa e firmemente.
   O vento rugiu com mais força. A lua brilhou no céu e um risco de prata rasgou os extremos. O coração de Cassian rasgou-se, e ele teria falado algo, se um estalo não tivesse soado.

   Estava silencioso. A sacada. O ambiente. Demorou até que entendesse que o estalo... havia sido em sua mente. Em sua mente. Um estalo forte, firme como... como um...
Como um laço.
Um laço. Firmado. Dos dois lados. Largou Nestha lentamente, reunindo fôlego. Ela o encarava de forma impassível, mas um fogo ancestral queimava de forma absurda. Aproximando-se lentamente, sua voz não saiu diferente das outras vezes, mas Cassian sentiu algo novo. Poderoso.

   — Já não era sem tempo.

   Nestha não gostava de falar o termo. Detestava. Mas ele sabia o que ela havia omitido. Sabia qual era a palavra.
Era parceiro.

Corte dos Sonhos e Outros ContosOnde histórias criam vida. Descubra agora