Sangue e Lâminas

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     É no escuro que residem os monstros, segundo as histórias e as canções de ninar. É onde os covardes agem, é onde a maldade reside, é a casa do Mal. O sombrio é misterioso, horrendo e implacável, com seus vermes rastejantes, cruéis. Nada sai das sombras senão terror, caos, medo. É no escuro que residem os monstros.
     Mas o que é um monstro?

     Koschei questionava-se enquanto atravessava para dentro da Prisão, o último registro da história de seu irmão, da história do seu sangue. Estava livre, estava aturdido, e o conhecimento que absorvera em meio ao massacre de sua libertação lhe mostrou sobre onde estavam mantendo aquele que chamavam Entalhador de Ossos. Onde tinham o prendido, assim como prenderam a ele. Como animais, como bestas. Ameaças.  Nada além de feras irracionais que só entendiam o massacre. O morticínio.
      Talvez eles fossem de fato as bestas que contavam as lendas sussurradas. Koschei não saberia dizer com clareza. Não saberia explicar quem ou o quê havia colocado tanta sombra, sangue e fúria dentro de seu ser. Mas demoraram tempo demais para as retirar e agora pertenciam a ele. Eram uma com ele, toda a morte e carnificina, eram dele. E não havia nada a ser feito.

     O lugar fedia à magia. Não teve tempo de saber mais nada, porém os conhecimentos e vozes dos internos daquela Prisão maldita fluiam por seu corpo como a água negra de um rio. As vozes, todas as vozes e sombras que gritavam e arranhavam as paredes em ódio calaram-se em respeito. O verdadeiro Senhor das Sombras estava ali. Estava presente e livre.
     E estava na cela de seu irmão.
     Raspou as garras nas paredes. O quanto ele deve ter sofrido, o sangue do seu sangue. O quanto a mente do sonhador Ankou não deve ter sido massacrada por aquelas paredes de pedra fria e escura. Koschei segurou a raiva, uma onda crescente e mortal de raiva que não conseguia fazer nada além de destruir. Olhou para cima e viu... o teto. Um teto obscuro, opressor e brutal. Um teto sem a vista para o céu.

     — Ele não era como nós, Stryga... Ele não era como nós. Nunca foi parecido conosco, nosso pequeno Ankou. — Os dedos se demoram nas marcas gravadas nas paredes. Com ossos, presumiu ele. Uma história, no Velho Idioma, sua língua nativa. — Ele queria o céu e todas as estrelas. Ele as encarava e sorria, sonhava. Conversava com elas. Ele não era como nós, Stryga, nunca seria como nós. Ele era uma esperança.

     Não havia lágrimas, não hava espaço para as lágrimas. Ao menos era o que pensavam dos deuses da morte, das entidades sombrias mais malignas que se tem notícia. Mas elas vieram à tona, como uma explosão do que Koschei não sabia expressar, não sabia significar. Quanto mais ele lutava, mais fortes elas tornavam-se. Vieram, tomaram e cresceram e como algo maior do que ele podeira controlar. Seus dedos leram o nome de Stryga e o seu, registros da lembrança que seu irmão permtiu-se gravar.
     Uma lâmina de sombras foi conjurada e Koschei implodiu numa série de ataques constantes, frustados e carregados de ira. Luto, era o luto segurando a arma, era o luto destroçando aquelas paredes e apagando a história gravada, agora absorvida por ele. Foi o luto que o fez esmigalhar o teto de pedra da cela, furando estruturas, barreiras mágicas e tudo o que estivesse em sua frente, até alcançar o brilho do sol. 

     Estava no topo da Prisão, no ponto mais alto daquela construção ofensiva, do mausoléu que queriam confinar seu sangue, seu próprio sangue. E conseguiram, por tanto tempo conseguiram. Koschei encarou o céu poente, o dourado que banhava seu corpo e a promessa de sombras. Eternas sombras naquele local amaldiçoado.

     — Sem mais prisões.

     O deus abriu suas asas e voou. Para o alto, para longe, para a vingança que espreitava no cair da noite. Abriu suas asas e voou para o inifinito que se estendia a sua frente, e tão forte foi a sua partida que a ilha-Prisão inteira afundou níveis dentro do oceano, rachando a sua própria estrutura interna. Marcando aquele local para sempre.
     Nada conteria a Morte. 

Corte dos Sonhos e Outros ContosOnde histórias criam vida. Descubra agora