Parabellum

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   Era por volta do meio dia quando Nestha sentiu uma tontura, mas não qualquer uma. Era uma sensação familiar e avassaladora. Nada normal. Pensou em chamar alguém, mas... Não. Não devia ser nada. Mas logo surge um repuxo no estômago, a cor sumiu de seu rosto. Antes que lhe faltasse o ar, Nestha sentiu uma mão firme nas costas, e a voz de Cassian cortou o ar frio:

   — Tomara que não seja nada grave.
   As feições de Nestha permaneceram inabaladas, mas seu olhar ditou o sentimento principal, um sentimento que não lhe era típico: medo. Cassian a princípio não entendeu, mas os olhos firmes se tornaram vazios, e o general raciocinou rápido, a cor sumindo do rosto e a voz temerosa:
   — O Caldeirão.

   Não eram capazes de analisar um motivo plausível. Não havia motivo plausível, era como reviver um pesadelo cruel, a pior de todas as piadas de mal gosto. Recusavam-se a acreditar. O Caldeirão estava seguro. Nestha havia consumido — parecia ter consumido — toda a energia roubada. Estavam em paz. Precisavam daquela paz. Mais do que imaginavam.

   E veio o segundo abalo. Este mais primitivo, mais forte. Revirou as entranhas de todos os presentes, fez os instintos se afiarem, os olhos de todos brilhavam como se houvessem sido energizados, amplificados. Amren semicerrou os olhos, encarando o horizonte que brilhava da janela. Suas feições não se alteraram, mas a angústia se fez presente nas palavras.

   — Só senti algo assim quando... — A garganta trava. — Quando estava lá dentro.

   Todos sabiam o local referido. Rhysand encara Amren e acena, soturnamente. Também havia sentido o mesmo. O poder era rasgado, possuía seus corpos até a medula, como se houvesse uma manifestação absurda. Poucos entes tinham esta característica. Nenhum deles era de Prythian.
   Até que uma coluna avermelhada de pura energia apareceu diante dos sete. Como uma aparição, uma invocação poderosa de alguém tão poderoso quanto. Não parecia magia feérica, era mais crassa, bruta. Magia sem refinamento. Simplesmente ignorou as defesas, tudo. Sumonou-se ali, revelando o que parecia ser um feérico.

   Era enorme. Todo ele era músculos, potência desmedida. Estava com o que parecia ser a parte de baixo de uma armadura illyriana clara, com escamas prateadas como as de Tarquin, porém muito mais forte. Sua aparência era bestial, os cabelos avermelhados caiam pelos ombros, e a barba grossa fechava-se em um cavanhaque também vermelho vivo, como chamas. A pele era bronzeada, mas não chegava a ser escura como a de Helion. Os olhos viciosos eram de um profundo vermelho-sangue, silenciosos e brutais. Tinha garras nas mãos e pés, estes sem calçado algum, garras que pareciam metal, e sua boca parecia esconder presas nada pequenas. Irradiava uma aura quente e sufocante, nada acolhedora. Ficou a encará-los por um longo tempo.

   — Esta é a hora... — Rhys quebra o silêncio, cauteloso, um tom abaixo. — Em que você se apresenta.

   Os Sifões de Cassian brilharam. Os olhos mapearam o possível oponente, criando possibilidades. Azriel permaneceu estático, petrificado. Atento. As sombras bruxuleavam acima das asas, como serpentes.
O bestial ser andou pelo salão, e seus pés provocavam rachaduras no assoalho. Ele parecia arrastar destruição, mas seu rosto cansado — ou entediado — dizia que não queria combates. Pelo contrário, estava determinado, inabalável. O peito subiu e desceu com a longa inspirada, sentindo o cheiro. Como se fossem a caça.

   — Rhysand, da Noturna. O Senhor da Noite. — A voz soava como se milhões de trovões houvessem sido reunidos. Ele encara Feyre, que estava ao seu lado. — Feyre, a Feita. Grã-Senhora da... Corte dos Sonhos. — A última parte saiu ferina, debochada, lentamente. Cassian rosna mas Rhysand o acalma com o olhar. O desconhecido mapeia o restante dos presentes. — Suponho que sejam o resto da cabala.
   — Não somos meros coadjuvantes. — Mor sibila, os olhos faiscando.
   — Receio que não, de fato. — O ruivo gesticula, quase que indiferente. Quase. — Mas são poucos  de vocês os que me realmente interessam.

   Rhysand dá um passo à frente. As asas erguem-se como uma presença sombria, e todos podiam jurar que a noite havia chegado mais cedo em Velaris. Os olhos violeta cintilaram com estrelas revoltas, mas não havia nada além de precaução. O desconhecido permanecia assim: desconhecido.
   O Grão-Senhor tentou avançar pela mente. As garras de obsidiana encontraram uma fortaleza. Poderosos e enormes e impenetráveis portões de aço avermelhado, manchado de sangue. Gavinhas e espinhos de freixo. Mas não só isso. Foi rechaçado. Expulso. O desconhecido o retirou da própria mente como se espanta um inseto indesejado. Era novo para Rhysand alguém com tais habilidades.

   — Como Grão-Senhor, eu esperava o mínimo de educação, Rhysand.
   — E como Grão-Senhor, sugiro que diga seu nome. Cassian não é conhecido pela paciência. E eu me encaixo na mesma definição.

   O general solta um rosnado gutural, como se confirmasse as palavras do Grão-Senhor. Mas a intimidação não surtiu efeito algum. O ruivo pareceu rir. Abrindo as narinas, ele dá um passo à frente.
E Rhysand não move um músculo.

   — Eu sou Koschei. — Feyre treme diante do nome. O motivo era pessoal, mas todos souberam o porquê da reação quando ele continuou: — Irmão de Stryga, a Tecelã, e daquele que chamam de Entalhador. — O titã encara a Grã-Senhora. — Você os conhece bem.

   O arquejo de Amren saiu pesado, suas pupilas dilatadas. Mor e os demais não ousaram esboçar atitude, talvez com receio da potência que poderia estar sendo contida; exceto por Feyre, que deu um passo à frente. Havia medo, mas igual determinação. Os olhos cintilaram com um brilho esbranquiçado como o fogo que possuía.

   — Suponho que saiba do seu irmão.
   — Eu senti. — Koschei a encara, e Feyre não se sentiu tão despedaçada nem quando foi atirada ao Caldeirão. Parecia que o ancião tinha poder o suficiente para baní-la da existência de todos os mundos. — Você conversou com ele antes do acontecido.
   — Acusando a Grã-Senhora? — Cassian ruge baixo, contendo o avanço contra o ente.
   — Atestando um fato, general illyriano.

   As asas de Azriel se esticaram, mas as sombras encolheram ante tudo o que foi proferido. Cassian manteve o olhar firme e predatório, mas assumiu postura defensiva, mantendo Nestha sob sua guarda, embora ela encarasse o ser quimérico com a impavidez de um colosso. Foi novamente a voz de Rhysand que cortou a tensão belicista que se instalava.

   — Suas intenções... — o Senhor da Noite ensaia, com cuidado. A voz voltara ao ronronar suave e firme. — Lutar conosco não é uma delas, presumo.
   — Está correto, Senhor da Noite. Vim porque podem me dar a informação que desejo.
   — Você é um deus da morte?

   A pergunta de Nestha ecoou no salão. A voz não saiu com cautela, medo ou precaução. Apenas a devida curiosidade e nada mais. A mais velha das Archeron permanecia implacável.
   — É um deus antigo da morte, como seus irmãos?
   — Não.
   — E o que é?
   Koschei sorri.
   — Sou um mal necessário. Um antigo quimérico responsável pela destruição. Dono de um artefato que me concedia maior amplitude em minha missão, que caiu em mãos indevidas quando fui banido de minha dimensão natal. Artefato este que pretendo recuperar.

   Rhysand e todos ali temeram pelo pior. Temeram cada palavra que Koschei dissesse depois do esclarecimento. As sombras de Azriel quase dissiparam, Mor fraquejou, Amren engoliu em seco e os ossos de todos tremeram até a medula quando Koschei completou:

   — Vocês o chamam de Caldeirão.

Corte dos Sonhos e Outros ContosOnde histórias criam vida. Descubra agora