Eternos Pecados

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     A imortalidade é um fardo. O arrastar incessante dos anos que soam como dias, e dos dias que duram vidas inteiras. A apatia de uma incerteza de acontecimentos, de uma linha do tempo que se move em espiral. O dedilhar do destino que sempre brinca com sonhos, esperanças e escolhas.
     Mas acima de tudo, o farfalhar das folhas que já caíram da sua árvore. Olhar para trás e ver os rastros longínquos de uma vida recheada de tantes outras, significados perdidos nas areias da orla de uma eternidade que queima. Arde.
     A mente de Tamlin era espancada com essas definições, com essa profusão de arrependimento e culpa e dor e medo. Sobretudo, uma raiva ancestral de sua própria origem ancestral. O anseio pelo abraço de um fim que não é mais que uma mera possibilidade.
     E tratando-se de Tamlin, o caminho era reverso. Onde o eterno seria um motivo de aprendizado, uma infindável possibilidade de revitalização, para o feérico havia tornado-se sentença. Punição. Condenação de um juiz cruel: ele próprio. Fadado ao encarceramento de seus eternos pecados.

     Koschei havia chegue ao destino final. Um local pútrido, sem alma. Havia vida ali, sim, mas irracional. Sem luz, sem a riqueza da cultura, da música, da dança. Árvores cada vez mais duras, feridas na terra cada vez mais profundas.
Da vegetação seca e opressora, uma enorme e decadente construção de pedra se erguia. Imponente e assustadora, as marcas diziam sobre um período de glória, onde aquela mansão era belíssima. Onde tudo era belo. Mas toda aquela glória havia terminado.
E para o Senhor da Morte, estava perfeito.

     Após procurar por pouco tempo no casarão, o senhor da morte encontrou seu anfitrião num amplo salão aberto com vitrais quebrados, por onde os galhos das árvores mais altas invadiam o aposento. O trono de madeira, enfeitado com arabescos entalhados primorosamente, estava marcado por garras, bem como todo o resto do salão. A enorme carcaça devorada de um cervo malhado jazia largada em um dos cantos, já atingindo a putrefação.

     — Trágico.

     A voz fez o monarca falido virar o rosto. Marcado por profunda tristeza e desolação, Tamlin aparentava ser mais velho do que já o era. Os olhos esmeralda ainda brilhavam com um fogo ancestral, mas algo parecia ter sido tirado dele. Algo necessário.

     — Quem disse isso?
     — As sombras de um passado decadente. — A voz era pouco mais que um escárnio pulsante, voraz e impiedoso como um monstro feito de escuridão. — Sou seu Abismo, Tamlin da Primaveril.
     — Estou velho demais para brincadeiras com entidades. Diga logo quem ou o que é antes que eu estripe você do pescoço ao estômago.
     — Ah, sim! O glorioso Grão-Senhor, em todo o seu poder! — A voz retrucou, com uma risada que pesava desprezo. — Sim, Tamlin, eu insisto. Me rasgue ao meio como fez com seu próprio povo. Por favor, eu insisto. Ache, considere que meu sangue vai lavar sua culpa e seus pecados.
     — Você não me conhece. Não sabe nada sobre mim. É apenas uma entidade patética, e vai sair de meus domínios por bem ou por mal.
     — Tamlin, filho de Rhaegar, o mais forte da prole e atual Grão-Senhor Primaveril. E vai fazer o quê para me tirar, Tamlin? Pelo que eu me recordo, gosta de prender as pessoas contra a vontade. Não foi assim que torturou sua noiva?

     Tamlin virou o trono para o vazio, para a voz gutural que se provava invencível. A madeira nobre espatifou-se em milhares de lascas, levantando poeira do chão enquanto Tamlin assumia uma posição predatória, quase animalesca. As garras ameaçavam sair, letais como espadas. 

     — QUEM PENSA QUE É PARA FALAR--
     — Do seu passado? Ah, Tamlin... — A voz parecia entendiada, e do canto mais fundo da sala, seu interlocutor revelou-se. Elegante em sua túnica vermelha com elegantes arabescos púrpura, Koschei exibia os cabelos ruivos junto ao cavanhaque forte e fechado. Os olhos alaranjados fitaram o pífio Grão-Senhor. — Eu sou o acerto de contas. 

Corte dos Sonhos e Outros ContosOnde histórias criam vida. Descubra agora