A rotina de hospital não era desconhecida para elas. Durante o curso de medicina, como internas, passaram pela correria do pronto atendimento. Mas aquele era o Hospital das Clínicas de São Paulo, com um dos maiores programas de residência do país e da América Latina. Era uma referência nacional e seria cobrado um padrão de excelência de todos os residentes. Não que isso fosse um problema para qualquer uma das duas.Naquele primeiro dia de residência, Bianca caminhava confiante até a ala de cardiologia. Estava embasbacada com toda a grandeza do lugar, era quase uma nova realidade que, mesmo extremamente nervosa, se sentia mais do que pronta para encarar, já que ela estava diante do seu grande sonho, estava vendo ele acontecer. Seu coração bombeava adrenalina para todo o seu corpo, seus sentidos estavam apurados e sua visão se esforçava para capturar cada detalhe possível de se enxergar.
Gostava de desafios, de como sua mente funcionava para superar as adversidades e principalmente as dificuldades. Desde pequena, ouviu de parentes e professores que era uma menina muito inteligente. Por muito tempo, não entendeu o que aquelas pessoas queriam dizer, já que nunca havia feito nenhum esforço extra. Não era uma aluna que se matava de estudar em casa, ela simplesmente prestava atenção nas aulas e se saía bem nas provas.
Para Bianca, não existia um segredo. Ela via, ouvia, lia, escrevia. Sua mente era capaz de absorver as novas informações e, de alguma forma, sabia exatamente como e quando aplicá-las. Só mais velha, quando ingressou no ensino médio, que finalmente entendeu que tinha uma facilidade de aprender. O conhecimento grudava em seu cérebro e mesmo que ela quisesse, não era capaz de esquecer.
E foi assim que ela conseguiu passar no vestibular de medicina na Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi assim que ela conseguiu ser a melhor aluna de sua turma e foi assim que ela passou, com folga, na residência que sonhava: cirurgia cardiovascular. Estava ali. Era mais um passo que dava na direção do futuro que lhe pertencia. Tudo na sua caminhada, lhe pertencia. Todas as batalhas, ganhas ou perdidas, todos os choros e gargalhadas também. "Nada é tão nosso quanto os nossos sonhos" estava tatuado em sua pele.
Parou diante da porta e encarou a espécie de letreiro que havia, informando que a partir dali, entraria uma nova fase de desafios. Estava pronta, sempre esteve. Respirou fundo e ajeitou a postura. "Peito pra fora e cabeça erguida sempre, Bianca. Tenha orgulho de quem você é" repetia para si mesma as palavras que sua mãe lhe falava desde pequena. Confiar em si mesma, era tudo o que ela tinha. E era tudo o que precisava.
Bianca estava realizando a sua missão no mundo. Mesmo sem perceber, desde sempre a vida lhe preparou para aquele momento, por isso se sentia tão pronta e confiante, como se estivesse ali desde que nasceu. Talvez fosse um pouco narcisista, mas ela era capaz de afirmar que já se sentia parte do coração daquele hospital, já sentia que era uma função importante para a totalidade que aconteceria nos próximos anos.
Seria sua melhor versão ali, se empenharia em dar suporte aos ciclos observados na circulação humana em sua versão palpável e social, assim como o coração faz no organismo. Ela deixaria todo aprendizado entrar pela veia cava superior e inferior do seu cérebro, assim como o sangue desoxigenado entra no coração antes de ser restaurado, se tornado rico em oxigênio mais uma vez e bombeado de volta para o corpo, dando continuidade a vida. Faria o seu melhor para fazer jus ao juramento e não se perder de si mesma no meio daquele novo mundo que, em corações errados, poderia se tornar cruel.
Em outro pavilhão, Rafaella dava início ao mesmo ciclo. A área que havia escolhido, neurocirurgia, era dominada por homens. Por isso, não estranhou ao perceber que era a única mulher ali. Sua expressão se manteve serena quando se apresentou e conheceu seus colegas de turma. Homens brancos e privilegiados. A presença deles não incomodava ou intimidava. Desde sempre, aprendeu a se impor e se fazer ser respeitada. Ali não seria diferente. E tudo bem, ela estava pronta.
Sempre pronta. Esse era seu mantra. Mesmo que não estivesse, ela mentia para si mesma até acreditar e, assim, conseguia se safar de qualquer situação. Qualquer situação. Ela era uma camaleoa, conseguia se adaptar ao ambiente, era sociável quando precisava, sorridente, séria ou brava. Era como se colocasse máscaras em seu rosto diante de cada circunstância. No caso dela, não era falsidade e sim sobrevivência.
Sentiu os olhares de avaliação assim que passou pela porta. "Homens" revirou os olhos internamente. No entanto, da mesma forma que foi avaliada e prejulgada, ela também o fez. Sobre cada um dos cinco colegas. Sim, naquele ano seriam apenas seis residentes na turma de neurocirurgia. Era uma especialidade pouco procurada, já que nem todo mundo tinha aptidão para a área.
De maneira mais discreta, seus olhos percorreram cada um dos médicos que estavam na sala de descanso. Rafaella tinha uma habilidade invejável de ler as pessoas. Com apenas algumas palavras, ela era capaz de analisar a linguagem corporal e a entonação que era empregada em cada fala. Os olhares e a intenção por trás deles. Tinha plena consciência de que era uma mulher bonita e que chamava atenção. Já havia sido julgada por sua aparência antes e, sinceramente, não se importava. Afinal de contas, usava os atributos que possuía em seu favor quando era necessário.
Dos cinco colegas, em apenas dez minutos de interação, descartou quatro. Focou em Miguel, um rapaz centrado, mas com um sorriso carinhoso. Parou ao seu lado quando o preceptor entrou na sala para desejar boas vindas e dar as primeiras orientações. Automaticamente, sua atenção foi toda voltada para o médico que, para eles, era também um professor.
Naquele momento, sua mente tornou Dr. Roberto Novis seu objetivo. Ou seja, nada mais importava para ela, apenas as palavras que saíam da boca dele. Era assim que funcionava para Rafaella, era assim que conquistava tudo o que queria. Foco, determinação, esforço e, sob hipótese alguma, se deixava desviar do caminho. Para a jovem médica, não existiam distrações.
Não precisa nem dizer que ela tinha plena consciência do desafio que estava encarando. Quando escolheu a neurocirurgia, levou em conta seus talentos e habilidades. O cérebro humano, quando exposto, é frágil e delicado. Rafaella tinha estabilidade emocional e um bom controle de suas mãos. Para um leigo, essa última habilidade pode parecer besteira, mas para um cirurgião que lida com a massa encefálica, um erro de um milímetro pode literalmente acabar com uma vida. Então sim, era extremamente importante ter firmeza e controle nas mãos e nos dedos.
Sua determinação nos estudos também era algo que usava em seu favor. Era empenhada e nunca reclamou de madrugadas em claro estudando. Para assimilar o conteúdo, ela precisava ler e fazer um resumo do material. No começo, quando decidiu prestar vestibular, sofreu um pouco até conseguir se ajustar. Mas, assim que entendeu que não precisava de nada além de um bom controle mental, condicionou-se a uma nova rotina que mantinha desde então. Nunca parava de estudar.
Durante a graduação, produziu artigos, participou de seminários como ouvinte e palestrante também. Gostava da vida acadêmica e era bem envolvida e engajada. Sabia se colocar e era boa com as palavras. Ah... E carismática. Não existia um ser humano capaz de resistir a Rafaella. Sua delicadeza, o sorriso de menina meiga, os toques gentis. Ela tinha uma aura envolvente que era impossível escapar.
Gostava e entendia o cérebro humano. Não só sua anatomia e as possíveis deficiências, mas a psique também a atraía. Lia sobre psicologia e achava extremamente fascinante analisar as pessoas de seu convívio diário. Foi assim, através desse conhecimento que buscou desde que um professor do colégio citou Freud e Nietzsche, que aprendeu sobre si mesma, a lidar com suas frustrações, seus sentimentos negativos sobre algo que estava além de seu controle. Outro fato sobre ela: precisava sempre estar no controle de sua vida. Não se permitia dar um passo sequer fora da linha. Para atingir seus objetivos, precisava de disciplina. "Oh yes, I can" estava gravado em sua mão. Nunca duvidava de si mesma.
Não existia, portanto, uma especialização mais apropriada para ela. Se considerava inabalável e ninguém nunca foi capaz de lhe provar o contrário. Os tropeços não passavam disso: meros dissabores que, com uma boa sacudida na alma, ela conseguia expulsar de seu corpo. Rafaella era blindada. Não por Deus, mas por si mesma. E isso... Não existia ser humano no mundo capaz de lhe tirar.
Naquela segunda-feira de manhã, o Hospital das Clínicas de São Paulo ganhava duas médicas dispostas a corresponder aos padrões exigidos. Talvez até elevá-lo. Especializações diferentes, desafios diferentes, caminhos diferentes. Mulheres fortes e preparadas para enfrentar as dificuldades diárias da prática médica. Mas sem saber o que o destino lhes reservava. Talvez, mesmo sem terem se dado conta ainda, elas precisassem da ajuda do universo para acordar.
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Awake
FanfictionOs caminhos que escolhemos viver nos constroem e nos destroem. Nem sempre na mesma proporção, é verdade, mas os fardos sempre estão lá, assim como as conquistas. Cedo ou tarde, todo mundo é forçado a assumir o controle da própria vida, trilhar sua p...