II - O delírio

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Violenta, terrível, espantosa tinha sido a crise, e Túlio velava à cabeceira do enfermo. A noite há muito que tinha desdobrado sobre a terra seu pesado manto de escuridão, animando destarte o profundo silêncio dos bosques, apenas interrompido pelo roçar do vento nos longínquos palmares, ou pelo gemido triste de sentido noitibó, ou os agoureiros pios do acauã.

O quarto do doente era apenas aclarado por fraca luz, cuja baça claridade deixava contudo ver-se o rosto do mancebo, afogueado pelo requeimar da febre: os olhos tinha-nos ele dilatados, e com esse brilho e movimento que só dão a febre. No entanto estava tranquilo, e um só gemido não se lhe ouvia.

Após um breve instante desse fictício sossego, entrou a tremer-lhe o lábio superior, ergueu as mãos ambas para o céu, e volvendo-se no leito murmurou com voz queixosa frases que não foram compreendidas.

— Eu a vi! – exclamou, erguendo a voz, num transporte de satisfação – Vi-a, era bela como a rosa a desabrochar, e em sua pureza semelhava-se a açucena cândida e vaporosa! E eu amei-a!... Maldição!... Não... nunca a amei... E calou-se.

Depois um gemido lhe veio do coração; cobriu os olhos com as mãos ambas, e repetiu:

— Oh! Não, nunca a amei!...

Seguiram-se palavras entrecortadas, gemidos e gesticulações desordenadas para ao depois cair em inércia.

Era o delírio assustador que se manifestava!...

Túlio observava-o com angústia: as dores do mancebo sentia-as ele no coração.

A lua ia já alta na azulada abóbada, prateando o cume das árvores, e a superfície da terra e, apesar disso, Úrsula, a mimosa filha de Luísa B., a flor daquelas solidões, não adormecera um instante. É que agora esse anjo de sublime doçura repartia com seu hóspede os diuturnos cuidados que dava a sua mãe enferma; e assim, duplicadas as suas ocupações, sentia fugir-lhe nessa noite o sono.

Bela como o primeiro raio de esperança, transpunha ela a essa hora mágica da noite o lumiar da porta, em cuja câmara debatia-se entre dores e violenta febre o pobre enfermo.

Era ela tão caridosa... Tão bela... E tanta compaixão lhe inspirava o sofrimento alheio, que lágrimas de tristeza e de sincero pesar se lhe escaparam dos olhos, negros, formosos, e melancólicos. Úrsula, com a timidez da corsa, vinha desempenhar à cabeceira desse leito de dores os cuidados que exigia o penoso estado do desconhecido.

Nenhuma exageração havia nesse piedoso desempenho; porque Úrsula era ingênua e singela em todas as suas ações; e porque esse interesse todo caridoso, o mancebo não podia avaliá-lo, tendo as faculdades transtornadas pela moléstia. Este sentimento era pois natural em seu coração, e a donzela não se envergonhava de o patentear.

— Túlio, – disse ao entrar – como vai ele? Toda a resposta do escravo foi um suspiro de profundo desânimo.

Úrsula chegou-se ao leito do enfermo, e com timidez, que a sua compaixão quase destruía, tocou-lhe as mãos. As suas gelaram de desalento e de comoção, porque sentiu as do doente ardentes como a lava de um vulcão.

Então, ao contato dessas débeis mãos que tocaram a sua, o cavaleiro abriu os olhos, a que um delírio febril dava estranha expressão, e fitando a donzela, num transporte indefinível do mais íntimo sofrer, exclamou com voz magoada e grave:

— Oh! Pelo céu! Anjo ou mulher! Porque trocaste em absinto a doçura do meu amor? Amor!... Amei-te eu? Sim, e muito. Mas tu nunca o compreendeste! Louco! Louco que eu fui!... E passando da dor à desesperação, torcia os braços gritando:

— Eu te vi, mulher infame e desdenhosa, fria e impassível como a estátua!
Inexorável como o inferno!... Assassina!... Oh! Eu te amaldiçoo... e ao dia primeiro do meu amor!... Minha mãe!... Minha pobre mãe!!... – E entrou a soluçar desesperadamente.

Úrsula (1859)Onde histórias criam vida. Descubra agora