XVII - Túlio

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Úrsula estava assaltada de justos temores, ainda que menos penosos; porque julgava o convento asilo seguro. Contudo ela pensava em Susana, e muitas vezes tremia com a ideia de que seu tio intentasse persegui-la, ou vingar nela a sua desaparição, e resolveu-se a escrever a Tancredo, pedindo que a mandasse vir.

A Fernando, porém, tardava por demais a hora da vingança; vigiava de parte a sua presa, seguia-lhe os passos, e nutria de infernal esperança o coração ávido de sangue e vingança.

Na hediondez de seu ódio e de seu ciúme, arrancava os cabelos, dilacerava o rosto, e blasfemava contra Deus e contra os homens.

E essa hora tão ardentemente desejada chegou enfim, e ele afagou-a com medonho sorriso. Era um dia belo, como a suprema felicidade, esse da vingança para um coração que só se aprazia no ódio!

Tancredo, todo entregue às doçuras de um amor que lhe fazia esquecer as dores com que uma outra mulher por tanto tempo lhe havia ulcerado o coração, nem uma ideia vaga lhe perpassava pela mente da surda e atroz vingança que o comendador lhe preparava.

Julgava-o resignado, e escondido no fundo de sua fazenda, amaldiçoando-lhe a ventura, ou sonhando ilusões fagueiras de que Úrsula, mais tarde, medrosa de o ter desdenhado, fosse correndo implorar-lhe perdão.

Nesse pressuposto estava Tancredo, que já esquecido mesmo dos tristes precedentes da sua vida, porque acabava de ver Úrsula, esse anjo de paz, que lhe sorria, chamou o seu fiel Túlio para encarregá-lo de algumas ordens, que só por ele seriam bem desempenhadas. Mas Túlio não apareceu.

Era o dia destinado para celebrar-se no convento de *** a cerimônia do seu casamento; e por isso a desaparição de Túlio assaz o surpreendeu.

Entretanto a noite começava a povoar de sombras o espaço da terra.

A demora de Túlio indo a mais, Tancredo passou da surpresa à inquietação, e uma ideia terrível lhe atravessou a mente. Mas tratou de repelir tão funesto pensamento que lhe voltava sempre, e cada vez tomando maiores proporções de realidade.

Então procurou informações sobre o comendador, ninguém lhas soube dar; e antes suspeitavam todos que estivesse em Santa Cruz.

Depois de fazer em vão procurar por Túlio, aflito por um acontecimento aliás tão estranho, Tancredo, acompanhado de alguns de seus amigos, seguiu para o convento de ***, onde devia receber aos pés do altar a mulher de suas adorações.

A noite ia já adiantada quando eles franquearam a porta do santuário. Os círios, que iluminavam o trono do Senhor de misericórdia e de bondade, os sinos, que tocavam alegremente no alto da torre, as flores, que juncavam o pavimento da igreja, não distraíram a Tancredo de seus tristes pressentimentos acerca da desaparição de Túlio, e o coração gemia de angústia. Ele então, indagando a si mesmo, achava estranho o sentimento penoso que lhe nascia na alma, porém embalde tentava recobrar a serenidade de ânimo. Túlio figurava-se-lhe em perigo iminente, e toda a felicidade que o aguardava não lhe apagava esse crescente desassossego; porque essa felicidade começava a parecer-lhe que mais tarde se tornaria amarga. Mas esse estado de angústia e pesar desapareceu com a presença de Úrsula, bela e ridente, e que tão meigamente lhe sorria.

Vinha acompanhada das jovens religiosas, que já a amavam: no meio dessas virgens consagradas ao Senhor, era como uma rosa entre açucenas. Trajava simples vestido de seda preta, e mimosas pérolas ornavam-lhe o colo de neve, brandamente agitado pelo voluptuoso arfar do peito. A fronte altiva, e jaspeada agrinaldava-a uma capela de odoríferas flores de laranja, e o véu de castidade flutuava-lhe sobre os ombros nus e bem contornados, e encobria-lhe os negros e aveludados cabelos.

Assim era ela mais formosa que nunca, e Tancredo, vendo-a tão radiante de mocidade e de amor, olvidou suas penosas inquietações para só rever-se nela, para render-lhe um culto de apaixonada veneração.

Úrsula (1859)Onde histórias criam vida. Descubra agora