XIII - O cemitério de Santa Cruz

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Era uma dessas tardes que parecem resumir em si quanto de belo, de luxuriante, e de poético ostenta o firmamento no Equador; era uma dessas tardes que só Bernardin de Saint-Pierre soube pintar no delicioso Paulo e Virgínia, que deleita a alma, e a transporta a essas regiões aéreas, que só a imaginação compreende, e que divinizando as nossas ideias, nos torna superiores a nós mesmos.

Era, pois, uma dessas tardes em que o sol no seu descambar para o acaso recebe mil e cambiantes cores, invejadas pela palheta dos Rafaéis, e que se confundem com o sorriso da triste amante, a lua, que ressurge pálida na orla do horizonte. Os últimos raios de um sol vívido misturavam-se com os raios prateados de uma lua de agosto.

E na ampla solidão dos campos, onde se espelhavam as harmoniosas despedidas do rei do dia e o frouxo brilho da deusa caçadora, mais poética magia difundia no espírito daquele que a essa hora encantadora e melancólica os atravessasse com o coração tranquilo.

Silencioso e ermo estava então o cemitério de Santa Cruz, e só o vento, que silvava entre o arvoredo ao longe, e que mais brando gemia tristemente nessa cidade da morte, é que quebrava a solidão monótona e impotente desse lugar do esquecimento eterno!

Esquecimento! Encontrá-lo-emos acaso? Essas dores, que nos retalham o coração, serão porventura esquecidas, dormirão acaso no fundo do sepulcro? Quem sabe?! Quem no-lo poderá afirmar!? Deus. Só Deus o sabe, e os seus arcanos são incompreensíveis. O morto dorme o sono eterno, e a sua campa é muda como os seus lábios!

O sepulcro recebe o segredo do morto, e guarda-o, e o não revela!

E o que vive, diz:

O morto repousa sob a lousa, seu corpo reduz-se a terra, e a paz e o esquecimento das dores humanas, que ele há tanto anelava, lhe oferece a morte.

Oh! Passam-se os séculos, e ele não volve! É sempre mudo, e frio como a terra, que em borbotões se derramou sobre ele!

Simples e quase nu era esse cemitério de Santa Cruz – como devera ser a última morada do homem.

A vaidade não tinha franqueado o seu liminar, aí não havia mausoléus, nem floreadas campas, mas uma capelinha singela e pobre e a cruz com os seus braços distendidos, protegendo as cinzas dos que eram pó, e denunciando que na vida seguiram a sublime religião do Cordeiro Crucificado. Além disso, uma ou outra árvore e ervas rasteiras cobrindo o terreno e invadindo tudo.

A estrada, que ia a Santa Cruz, abria-se aos pés desse lugar de tão saudosas recordações.

Úrsula, a essa hora do crepúsculo, desatinada por tantas dores, depois de vagar incerta no caminho que queria seguir, tinha enfim penetrado no âmbito pavoroso, que encerrava os restos de sua mãe.

De joelhos beijou a terra úmida e ainda revolta pelo alvião: e o pranto amargo, que lhe inundava as faces, e o soluçar magoado, que vinha lá dos abismos de sua alma, eram a mais sincera expressão da sua dor – e a mais grata prece ao altíssimo.

Que soledade a sua! Entregue agora a toda a força de um destino, cuja dureza começava a experimentar, no começo dos seus anos, ela não podia ter ânimo para encará-lo sem tremer.

Que lhe restava agora sobre a terra? Um amor ardente e apaixonado, ternamente correspondido; mas que a esta hora, ignorando toda a sua angústia, todo o perigo que a ameaçava, estava longe de a poder salvar, e amparar contra as fúrias de Fernando!

Pobre e desditosa Úrsula!... Era essa a única ventura que lhe restava – o único elo, que ainda a prendia à cadeia da vida!

Mas a mísera, transida de dor, no excesso de sua íntima e irremediável mágoa, esqueceu o seu amor, e até mesmo a odiosa imagem do comendador. A inconsolável filha chorava a perda irreparável e eterna de sua querida mãe!

Úrsula (1859)Onde histórias criam vida. Descubra agora