XVI - O comendador Fernando P.

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A mais de uma légua distante de Santa Cruz deixamos Fernando P. galopando ansioso, blasfemando e praguejando contra aquele que por ventura o contrariasse, e acompanhamos aos jovens desposados até o convento de ***, onde deixaremos por agora Úrsula meditando sobre os últimos acontecimentos de sua vida, que mais risonha e sedutora já se lhe figurava, e vamos ao encontro desse homem, animado por tão loucas esperanças, e tão disposto a amar, como a perseguir ao objeto da sua adoração.

O comendador, talvez mais por ostentação que por sentimentos religiosos, tinha em sua casa um capelão, que era voz pública ser-lhe muito dedicado em consequência de altos favores feitos pelos pais de Fernando à sua família. Fosse pelo que fosse, o capelão de Fernando P. dizia-se amigo deste, e isso causava a todos admiração; porque o comendador era um homem detestável e rancoroso, e o sacerdote parecia ser santo varão.

Por uma singular anomalia, estes dois homens pareciam querer-se, ou suportar-se reciprocamente, e essa união dava-lhes a reputação de íntimos amigos.

Fernando, homem estúpido e orgulhoso, não sabendo sequer exprimir seus próprios pensamentos, e não querendo confiar a alguém que ele julgava inferior a si pela posição, e pelo nascimento – única tábua de salvação, a que se pegava em seu naufragar contínuo de completa ignorância – tinha ido à cidade, suposto que ralado de mortais desconfianças, arranjar os papéis da mais absoluta necessidade, ou para fazer-se incontinente esposo de Úrsula, no caso de ainda encontrar viva a mãe desta menina, ou para, constituído por esta senhora tutor de sua filha, esta não poder escapar à sua vigilância, nem à sua paixão. Como ainda este erro seu era grosseiro!

Úrsula podia deixar de aceitá-lo por tutor, e, ainda aceitando-o, recusar-se energicamente a ser sua esposa. O comendador estava afeito a mandar, e por isso julgava que todos eram seus súditos ou seus escravos.

Já o sol não dominava as regiões da terra, quando Fernando P. apeou-se à porta de sua habitação para dar ligeiramente algumas ordens. Vinha esbaforido e preocupado por um pressentimento, que embalde tentava destruir.

— Talvez eu venha por demais tarde! – ao apear exclamou sem intenção de o fazer; porque era contra o seu orgulho, que não imaginava dificuldades.

Dois negros de cabeça baixa, e humilhados, que lhe vieram pegar as rédeas, ouviram em silêncio essa exclamação desesperada, e pela contração dos supercílios do comendador tremeram involuntariamente.

Depois subiu para a varanda, e logo uma multidão de escravos se lhe veio aproximando; mas ele, erguendo a voz imperiosa, perguntou: – Onde está o padre F.?

— Saiu ainda há pouco, meu senhor – animou-se a responder o menos tímido entre os que ali estavam.

— Saiu? – interrogou Fernando, enrugando a testa. – Para onde foi?

— Ignoro-o, meu senhor – tornou o mesmo escravo com voz convulsa pelo medo. – E creio que o mesmo acontece aos mais parceiros. Tomou a sua mula azeitonada, e há pouco o vimos desaparecer pela estrada do cemitério.

Os negros acabavam apenas de tirar a sela ao cavalo fatigado, quando o comendador, descendo de um salto as escadas, foi-lhes golpeando com o chicotinho que trazia, e gritando:

— Eia, que fazem, animais! Outro cavalo imediatamente selado. E os meus dois pajens, que me sigam.

Os míseros escravos gemeram de ódio e de dor; mas nem a mais leve exprobração, nem um sinal de justa indignação se lhes pintou no rosto. Eram escravos, estavam sujeitos aos caprichos de seu bárbaro senhor.

E a ordem era tão peremptória, que um outro cavalo apareceu como por encanto arreado, e os dois pajens montados em suas cavalgaduras.

Fernando P. montou e impaciente cravou as esporas nos flancos do animal, e os negros o imitaram. A carreira era rápida, e nada os podia conter. Fernando pensava encontrar o padre, e não se enganou, que bem perto ia ele. Caminhava a passo lento e ia levar consolações àquela a quem o comendador ia pedir amor.

Úrsula (1859)Onde histórias criam vida. Descubra agora