Úrsula, no entanto, no meio da acerba amargura da saudade sentia um inefável transporte de amor e era feliz – seu amor ardente e apaixonado fora compreendido, sem que por seus atos o desse a perceber ao homem que o merecera. Ambos esses corações sentiram ao mesmo tempo desabrochar-lhes a centelha do amor que os abrasou. A saudade pungente da donzela tinha pois um lenitivo – a esperança, esse dom do céu que nos acompanha em todas as circunstâncias da vida.
Tancredo, esse homem de suas loucas afeições, e que ela tinha amado ainda desconhecido, era toda a sua vida; e por isso a saudade, a mais pungente, a primeira que lhe tocava a alma, envenenava agora essa fonte de prazer inocente, esse manancial de venturas, que aí havia feito nascer a chama de um primeiro e ardente amor.
Nunca tinha amado – na sua solidão seu coração era tão puro como o de um anjo; foi esse o primeiro choque que lhe abalou a alma, e a saudade devia corresponder à grandeza desse sentimento. Chorava, pois, porque ia ver partir o objeto de suas mais caras afeições; mas no momento da partida fez um supremo esforço sobre sua aflição e estendeu a mão ao mancebo, que a beijou com enlevo, e perguntou-lhe com magoado acento, que bem revelava o pungir do seu coração:
— Tancredo, quando vos tornarei a ver?
O mancebo, comovido por tanto amor, amor que era ternamente correspondido, amor que ele embalde tinha procurado na primeira mulher, que amou, sorriu-lhe com reconhecimento, e tornou-lhe com afeto.
— Lembrai-vos, Úrsula, que vos levo no coração, que seguir-me-á a vossa imagem, que hei de ver-vos em todos os objetos que me circundarem, que deixo minha alma e meu coração – todo o meu prazer, minha felicidade presente, o esquecimento de um passado amargo, as esperanças de um porvir deleitoso e cobiçado: lembrai-vos disto, e acreditai que breve estarei convosco. Contarei os dias da ausência pelo pungir de minhas saudades, e por breves que eles sejam achá-los-ei por demais longos. Longínquo é ainda o caminho que tenho a percorrer, mas a lembrança de que um anjo me aguarda com amor, e que esse anjo sois vós, dar-me-á asas, e estarei convosco daqui a meio mês. Então – acrescentou com um acento inexprimível – então serei para sempre vosso!
E Úrsula sentia-se inquieta, como se um perigo iminente estivesse a ameaçá-la.
O cavaleiro enfim partiu, e ela nada disse, e só um soluço doído, como o de quem geme de um pesar profundo, lhe rebentou do peito.
Tancredo transpusera já grande espaço, e Úrsula ainda não mudara seus olhos umedecidos de sobre ele, e o mancebo prosseguia rápido, até que uma ilhota de verdura o encobriu à vista da saudosa donzela. Então deixou o lugar dessa tocante despedida, e, como desejosa de confiar a alguém a dor das suas saudades foi correndo à mata, onde tinha ouvido dos lábios dele a confissão sincera do seu amor, e logo para aí dirigiu os passos, penetrou a mata, e lá, junto ao tronco secular, começou a derramar sentidas lágrimas. O sol, segundo sua marcha inalterável, dardejava na terra seus últimos e enfraquecidos raios, insinuando luminoso resplendores por entre as franças do arvoredo da mata solitária.
E Úrsula soluçava com lembrança da partida de seu jovem adorador, quando ao longe julgou ver dois pontos fugitivos. Era Tancredo, era Túlio, ela os reconheceu, ou melhor, o seu coração reconheceu o primeiro; e ela louca de afeto, que lhe requeimava o peito, estendeu-lhe os braços com delírio e com voz sufocada de novo lhe enviou seus ternos protestos. Mas ele ia já muito avançado para ouvir-lhe essa voz saída do coração.
A donzela então saiu da mata; porque lembrou-se de sua mãe, e volveu para ela; mas no dia imediato, à mesma hora do crepúsculo, voltou à mata, e imergida em sua meditação às vezes esquecia-se de si própria para só pensar no seu Tancredo. Soltando as asas à sua ardente imaginação, seguia-o na sua divagação, escutava-lhe a voz no rumorejar do vento, via-o no meio da solidão, e afagava-o com seus meigos transportes nesses lugares onde só estavam ela e Deus. E depois de longo e profundo cismar, muitas vezes punha-se a entalhar na árvore, testemunha de sua primeira ventura, o nome querido de Tancredo! Tão doce aos seus ouvidos. Com tanto esmero procurou entalhá-lo esse dia que, completamente absorvida nesse empenho, se esquecera do mundo inteiro. E o nome enfim estava completo, e ela pôs-se a soletrá-lo com um enlevo próprio da sua idade, e que só as almas apaixonadas podem compreender, quando o som desagradável, e medonho de um tiro de arcabuz, disparado bem junto dela, a veio arrancar a esse recreio do espírito e a fez estremecer convulsa e dar um grito involuntário. Espavorida, e meia morta de terror, ia ela alevantar-se, quando uma avezinha, uma infeliz perdiz, como que implorando-lhe socorro, veio, ferida e agonizante, cair-lhe aos pés. Movida de compaixão, desvaneceu-se-lhe por encanto o pavor que o som do tiro lhe incutira na alma e, tomando a pobrezinha em suas mãos, por excesso de bondade levou-a ao peito. Um rastro de sangue lhe nodoou os vestidos alvíssimos de neve.