XVIII - A dedicação

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Antero era um escravo velho, que guardava a casa, e cujo maior defeito era a afeição que tinha a todas as bebidas alcoolizadas.

Em presença dos dois homens de má catadura e feições horrendas, ele mostrou-se rígido, e atirou com o prisioneiro para um quarto úmido e nauseabundo, e mostrou interessar-se vivamente em cumprir as ordens, que recebera. Depois colocou-se à porta, qual fiel cão de fila a quem o dono deixou de guarda à sua propriedade ameaçada por ladrões.

Túlio, entretanto, debatia-se de desesperação encerrado nesse quarto, do qual se não poderia escapar sem cometer um crime, que repugnava-lhe o coração. Impaciente, receoso pela sua sorte, e ainda mais pela de seu benfeitor, contava os minutos, e amaldiçoava a mão que assim o retinha.

Curvou a fronte em uma de suas mãos, e descansando o cotovelo sobre a coxa, mergulhou-se em seus pesares e deixou-se levar por eles. A tristeza e o abatimento, que se debuxavam naquele rosto nobre, contristaram ao seu guarda, que atento o considerava.

— Coitado! – dizia ele lá consigo – Sua pobre mãe acabou sob os tratos de meu senhor!... E ele, sabe Deus que sorte o aguarda. Pobre Túlio!...

E o prisioneiro, ora abatido, ora desesperado, entrou a soluçar, e a desafogar por esse modo as dores que lhe assoberbavam o peito. Depois ergueu-se e entrou a passear pela estreita prisão, ora com passos rápidos e incertos, ora com andar frouxo, aflito e desalentado.

Soaram nove horas. Túlio deu um gemido de desesperação.

Antero, que também sofria, quis distraí-lo de seus pensamentos dolorosos, e murmurou:

— Meu filho, não achas que a noite assim vai tão lenta e fastidiosa?

Túlio não respondeu. Pensava então que Tancredo partira já a receber sua noiva, e que apenas saísse da cidade estaria a braços com os seus assassinos.

— Ah! – dizia ele estorcendo as mãos – E eu aqui guardado para o não defender!!...

O velho esteve por algum tempo recolhido em si mesmo; depois levantou-se, pegou de uma cuia e tratou de lançar-lhe dentro o que quer que era que estava em uma cabaça. Mas esta estava completamente vazia. Antero arremessou-a para longe de si com certo ar de desprezo, suspirou, e depois disse:

— Maldito vicio é este! E que não possa eu vencer semelhante desejo!

Oh! Acredita-me, Túlio, estala-me a garganta de secura. E como não há de assim ser? Desde que aqui chegou meu senhor que não mato o bicho. Arre! E nem uma pinga de cachaça! Nem ao menos uma isca de fumo sequer para o cachimbo.

Então passou pela mente do mísero prisioneiro um lampejo de esperança, respirou com indizível satisfação; mas com arte objetou, afetando repreensivo acento:

— Que mau vício em verdade, pai Antero... Sempre a fumar e a beber. Não vos envergonhais de semelhante procedimento? Que conceito fará de vós o senhor comendador?!

— Que conceito? – interrogou o velho desapontado – Que conceito! É o único vício que tenho; e ainda por conservá-lo não prejudiquei ninguém. Que te importa que beba, – acrescentou com voz que queria dizer: não tens coração. — Por ventura pedi-te algum dinheiro para fumo ou cachaça? – e dizendo afagava a cabaça vazia com um desvelo todo paternal, como que arrependido de tê-la desprezado, a ela, a sua companheira constante.

— Não – respondeu friamente Túlio.

— Pois bem, – continuou o velho – no meu tempo bebia muitas vezes; embriagava-me, e ninguém me lançava isso em rosto; porque para sustentar meu vício não me faltavam meios. Trabalhava, e trabalhava muito, o dinheiro era meu, não o esmolei. Entendes?

Úrsula (1859)Onde histórias criam vida. Descubra agora