Capítulo VI

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ESSA OBRA ESTÁ REGISTRADA NA BIBLIOTECA NACIONAL E TEM OS DEVIDOS DIREITOS AUTORAIS RESGUARDADOS.


IAN

COM O CORAÇÃO DISPARADO, abri os olhos e fitei o teto branco do quarto. Apenas o ressonar de Kyle, dormindo na cama no outro lado do cômodo, interrompia o silêncio matinal. A camiseta de algodão colava em meu corpo ensopado de suor e eu ofegava como se tivesse corrido por todo o Canadá de uma ponta a outra.

Minha pele estava em chamas.

"Merda!", levantei num pulo e tirei a camiseta no caminho para o banheiro. As calças foram descartadas enquanto eu abria o chuveiro. A movimentação brusca fez minha cabeça latejar a ponto de tirar meu fôlego, mas não havia tempo a perder.

Àquela hora da manhã a água devia estar em torno dos cinco graus, e senti-la caindo sobre mim foi como uma bênção, eu quase gemi de satisfação. Na verdade, fiz isso, várias vezes. Apoiei os braços no azulejo branco e deixei que ela escorresse pela minha nuca e costas, acalmando o fogo. Abaixei a cabeça de boca aberta, entregue ao alívio, e o fluxo desceu pelo meu queixo, formando uma pequena cascata até o chão.

Um, dois, três, quatros, cinco, seis... Contar os segundos ajudava a manter a calma. Chegar até trinta era seguro, chegar a um minuto era crítico, significava que a água gelada não ia resolver.

Abri os olhos e encarei minhas mãos fechadas em punhos apertados contra a parede. Há quanto tempo eu não tinha uma recaída? Dois anos? Kyle chegou a acreditar que eu finalmente estava curado. E então os sonhos com a garota ruiva desencadearam o processo todo de novo.

A garota ruiva. Maldita fosse.

Pensar nela fez minha dor de cabeça atingir níveis insuperáveis.

"Porcaria!", rosnei palavrões, apertando um olho com a palma da mão.

Arquejando de dor, tentei me concentrar em apenas respirar devagar e manter a mente limpa, mas a imagem da garota era simplesmente difícil demais de apagar.

Por fim, encostei a testa na parede e deixei que o fluxo de pensamentos seguisse curso livre.

Não sonhávamos na forma de lobo – ou não lembrávamos depois da transformação, o que dava no mesmo. A mente de um animal, embora complexa em sua lógica, não é suficientemente ampla para acomodar as sensações e os sentidos da mente humana. É como tentar traduzir letras para números. Ethan acreditava que em parte nossas dores de cabeça descomunais eram consequência disso – disso e dos sonhos reais demais que tínhamos.

Na maioria das vezes eram formas e cores sem sentido, nada concreto ou significativo, mas às vezes eram imagens muito nítidas, com texturas e sensações. Essas eram sem dúvida as piores, porque deixavam rastros.

Rastros irritantes, no meu caso, porque traziam à tona coisas que eu não queria sentir. Coisas incômodas e confusas que eu não sabia o que significavam.

Do meu último período como lobo eu havia trazido poucas memórias, como a dor da fome, as paisagens brancas da floresta e os gritos ríspidos dos homens da cidade. A sensação do perigo era constante e nos marcava como uma cicatriz, transformando nossa personalidade.

Mas captei o cheiro da garota no Baked no mesmo instante em que transpus a soleira da porta – uma lembrança involuntária. Todos os meus sentidos me alertaram, pulsando como sirenes, embora eu não entendesse o porquê. A princípio, era sutil demais para ser percebido, e se perdia, frágil, entre os odores de pele humana, café, desinfetante, cigarro e o açúcar dos doces na vitrine. Mas quando consegui isolar seu cheiro suave e fugidio, percebi que vinha de algum lugar atrás do balcão. A sensação do reconhecimento ajustou-se aos poucos até tomar sua forma real e então não havia mais nada. Havia apenas isso: Evelyn SaintClair. Agora eu sabia como se chamava. Ela virou o rosto para o outro lado enquanto eu olhava, distraída por uma agitação qualquer, e uma longa mecha de cabelo liso resplandecente despresdeu do grampo na lateral da cabeça e resvalou sobre sua bochecha. O clarão da manhã transpassava os vidros da vitrine, desbotando tudo ao redor, mas as cores dela eram vivas como numa aquarela ainda fresca – o branco madrepérola da pele e o rosa claro das pálpebras, o coral dos lábios que combinava perfeitamente com os tons de um pôr do sol de verão dos cabelos cortados no estilo boneca. A boca era um pouco larga e carnuda demais para um rosto tão pequeno, mas parecia perfeita quando ela sorria. E a curva elegante do pescoço exposto... Me fez querer beijá-la só para saber como era a sensação de segurá-la pela nuca.

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