Prólogo

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ESSA OBRA ESTÁ REGISTRADA NA BIBLIOTECA NACIONAL E TEM OS DEVIDOS DIREITOS AUTORAIS RESGUARDADOS.


O FRIO SE INFILTRAVA pelas minhas roupas enquanto eu caminhava pela margem do rio congelado, minha respiração formando torvelinhos de nuvens no ar. O som dos meus passos na neve fofa era seco e áspero; os pedaços cristalinos de gelo encobriam o desenho da Barbie na ponta das minhas botas de plástico, não conseguia me mover direito com aquele casaco que fazia com que eu parecesse um astronauta, mas estava tudo bem – tudo estaria bem enquanto tivesse minha caixinha de biscoitos, presente de natal de um dos amigos do meu pai.

Quando os sinos das músicas natalinas ficaram distantes, virei para trás e olhei ao redor. Lá embaixo, Whitehorse se espalhava no terreno irregular, as casinhas iluminadas pontilhavam de colorido a paisagem branca; a neve preenchia as ruas e os espaços por entre elas como uma calda de marshmellow.

Caminhei pelo deck. A madeira rangeu sob meus pés, a fina camada congelada craquelava quando eu pisava. Sentei na beirada, deixando meus pés flutuarem no espaço vazio entre a plataforma e a superfície lisa como vidro lá embaixo. Então coloquei a caixa de biscoitos no colo e sorri – hora de abrir meu presente.

A caixa era de latão, como qualquer outra embalagem de conservados, mas coberta por um desenho colorido de um gorducho Papai Noel entregando presentes para cinco crianças mais ou menos da minha idade. Eram presentes sem graça, cavalinhos de madeira, ioiôs e um treco com penachos que eu nunca tinha visto antes, mas mesmo assim achei a tampa linda. Tirei a fita de cetim vermelho e abri a embalagem. Os biscoitos estavam dispostos em fileiras, aninhados em papeis dourados e azuis, e tinham formatos de ursinho, renas, trenós e pinheiros, tudo polvilhado com um açúcar

fino como areia. Mordi o lábio enquanto escolhia qual deles provar primeiro, embora soubesse que tinham todos o mesmo sabor. Optei pela rena; o gosto doce dissolveu na minha boca e o confeito ficou grudado nos meus lábios como um batom. O recheio de geleia de morango tinha uma textura maravilhosa, mas grudava nos dedos, tinha que ficar me lambendo feito um gato entre um biscoito e outro.

Foi quando percebi alguma coisa se movendo do outro lado da margem, por entre os pinheiros. Pensei que fosse uma ilusão, uma sombra fantasmagórica deslizando na névoa. A forma ondulou na brancura espessa da neve, a silhueta se destacando aos poucos até entrar em foco: patas alongadas, cauda felpuda e cabeça triangular com focinho e orelhas pontudas. Não olhava na minha direção.

A poucos metros para a esquerda algo menor saltitou depressa na neve, uma lebre cinzenta. O ataque foi rápido e preciso, quase sem levantar neve; de repente havia uma lebre e um lobo, e num piscar de olhos era apenas um lobo destroçando algo mole e sangrento no chão.

O vento gelado soprou pelo rio congelado, uivando baixinho. A voz de minha mãe me chamando veio de muito longe, uma perturbação no silêncio cósmico; o lobo ergueu a cabeça e um par de olhos estreitados me encarou à distância, vidrados e inteligentes. Os pelos embaixo de sua mandíbula estavam eriçados, fios vermelhos desciam por entre os caninos afiados, formando um rastro rubro sobre a pelagem cor de pérola.

Série Whitehorse - Volume IOnde histórias criam vida. Descubra agora