XIII. Proteção?

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Não sei dizer quanto tempo já se passou desde que embarcarmos rumo a Espanha. Minha noção de tempo estava totalmente desregulada. Para mim os dias passavam todos iguais, como se nem passassem na verdade. Tudo que eu fazia nesse tempo se resumia em lembrar do passado e pensar sobre o futuro, que era a parte mais difícil. Eu não fazia ideia do que seria de mim depois de chegar a Espanha.

- Hoje vai ser dia de pescaria. - Carlos disse no meio de uma conversa nossa sobre afazeres de viajantes.

Pelo que eu tinha entendido os navegantes pescavam grandes animais para vender seus recursos, como peles e outras coisas. Se as pescas fossem boas, comemoravam bebendo como se não houvesse amanhã e se fossem ruins, não era recomendável tocar no assunto perto deles. Agradeço por não precisar participar dessa atividade.

A vista azul da janela tranquilizava um pouco meus pensamentos sobre estar em um navio com bêbados. Dali eu conseguia ver alguns borrões passando sob as águas e com muito esforço pude descobrir que era animais marinhos. Era lindo. Aquela paisagem me fazia pensar o quanto a natureza é perfeita.

Passos pesados sob a madeira do navio invade o cômodo. Me viro em direção ao som, encontrando assim apenas um guarda qualquer olhando para dentro da minha cabine. Retribuo seu olhar medonho no mesmo nível e ele desvia o olhar se afastando. Me irritava o jeito que eles me julgavam como se eu fosse a pior pessoa do mundo, mesmo eu não fazendo ideia do porquê estava sendo presa.

Um pouco depois Carlos entrou no cômodo segurando uma bandeja com algumas frutas que seriam meu café da manhã.

- Bom dia, trouxe algumas frutas para você comer.

- Obrigada pela gentileza.

- Que gentileza? - Ele junta as sobrancelhas numa expressão perplexa. - Esse é o meu trabalho.

- Para de implicância.

O loiro suaviza a expressão me entregando a bandeja com cuidado. Ainda sob seu olhar furtivo comi todas as frutas que me foram oferecidas, o suficiente para saciar minha fome. Bom, agradeço profundamente por pelo menos esses alimentos estarem com um gosto agradável.

Outra coisa que não te contam sobre navegar como prisioneira é que a comida pode ser ou extremamente horrível ou exageradamente boa, nunca o meio termo. O problema é que as gostosas além de raras acabam rápido, então tem que aproveitar quando forem boas porque não se sabe quando vai come-las de novo.

Com o passar do tempo começo a escutar o barulho no deque superior aumentar, anunciando que a pescaria tinha começado. O barco balançou algumas vezes, me fazendo deduzir que fosse pelos enormes animais que passavam nas redes. Escutei gritos e saudações muito altos quando as correntes foram enroladas novamente.

Logo era possível ver muitos guardas passarem pela porta da minha cabine acompanhados de baldes e baldes cheios das mais variadas espécies de peixe. Grandes comemorações verbais dos tripulantes rompiam o silêncio do vasto oceano. Um tempo se passou desde que comecei a escutar os copos se trombando pelos corredores e logo todos cambaleavam bêbados.

Eu tinha a consciência de que isso significava mais perigo para mim, e estava disposta a fazer o que fosse preciso para me proteger, mesmo que isso significasse piorar minha possível sentença. Foi então que uma entrada rude no cômodo encheu meu ser de ódio.

- Olha só o que as ondas trouxeram... Oi sereia, posso te fazer companhia? - Disse o homem com a língua enrolada pelo álcool entrando no cômodo. - Pode ficar tranquila que eu vou cuidar muito bem de você.

- Dispenso seus cuidados, por favor de meia volta e saia daqui.

- Mas para que? Eu ainda nem fiz nada.

- E nem vai. Ouse tocar um dedo em mim e eu o faço se arrepender.

- E o que você vai fazer?

Mesmo com meu aviso o homem se aproximou. Em alerta me preparei para qualquer luta corpo a corpo. Estava em desvantagem pelas correntes e na teoria ele ganharia na força. No momento em que ele ameaçou me tocar não consegui pensar em desvantagem alguma.

Torci o braço do homem o deixando de costas para mim. Usei meus joelhos para acertar os pontos vulneráveis atrás dos joelhos dele. Por fim passei a perna com a corrente por cima de sua cabeça a enrolando em seu pescoço. O guarda se debatia, mas na posição em que ele estava era inútil. Neste momento agradeci mentalmente pelas lutas que vi com Carmen. Eu o enforcava com a corrente enquanto seus braços se debatiam cada vez menos. Como o homem estava bêbado era mais fácil de o segurar.

- Eu avisei.

Em algum momento o homem desmaiou me fazendo o soltar. Quando olhei para a porta vi Carlos com um copo na mão me olhando boquiaberto. Eu massageava minhas mãos vermelhas por segurar a corrente enquanto tentava me acalmar. Podia não parecer mas eu estava com medo do que poderia ter acontecido se eu não tivesse conseguido me defender sozinha. Ignorando o olhar do meu amigo surpreso me sentei na cama cobrindo o rosto com as mãos. Eu estava em choque.

Pude escutar os passos dele se aproximando devagar de mim, parando onde o agressor estava desacordado depois voltando a se aproximar. Senti sua mão em meu ombro.

- Eu sinto muito por você ter que passar por isso.

Tirei minhas mãos do rosto e vi a expressão sincera em seus olhos. Sem que eu pudesse segurar senti pequenas gotas descendo pelo meu rosto até pingar na minha roupa. Depois disso fitei o chão.

- Tá tudo bem Carlos. - Disse baixo com a voz falha. - Tira ele daqui por favor.

E foi o que meu companheiro fez em seguida. Não era possível escutar uma palavra sequer na cabine, apenas os barulhos ainda sobre a comemoração da pescaria. Logo escutei meu amigo voltando.

- Depois disso não vou mais implicar com você, tenho medo do que poderia fazer comigo. - E essa foi a primeira vez que vi Carlos tentando melhorar meu astral.

Consegui apenas sorrir como resposta.

Isso tudo me lembrou de uma conversa que tive com Carmen quando alcancei a pré adolescência. Ela me dizia o quanto o mundo era cruel com as mulheres, e o quanto alguns homens poderiam ser asquerosos. O pior sentimento que já senti invadiu meu coração naquele momento. Era traumatizante pensar quantas mulheres tiveram que passar por isso, e quantas mais passariam por isso. É horrível só de pensar.

Eu não conseguiria nem se eu quisesse descrever o que se passava na minha cabeça naquele momento. Agradeço por Carlos não ter tentado puxar assunto algum. Eu encarava um canto qualquer do cômodo na esperança de esquecer o que tinha acontecido ali. Do fundo de minha alma eu espero que algum dia esse tipo de situação seja apenas mitos sobre o passado. Que nós sejamos livres desse trauma.

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