XII. A vida como ninguém

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Uma coisa que não te contam sobre ser presa é o quão terrivelmente desconfortável ficar em silêncio por tanto tempo sozinha é. Além da constante impressão de que o tempo não passa. Andei inúmeras vezes para todos os lados da cabine tentando fugir do tédio mas foi completamente inútil. Tudo isso sem contar com a mistura de sentimentos que bagunça meus pensamentos a todo momento.

Dormir ali era impossível, tanto pelo medo de me fazerem mal quanto pelo balanço causado pelo mar. A comida então nem se fala, é exageradamente ruim. Minhas tentativas de ser positiva em situações extremas como essa eram inúteis. Além disso criei alguns hábitos estranhos nesse tempo que passei no navio, um deles era o de falar sozinha. Como se não bastasse ser criminosa agora também era louca.

- Com licença Jade, precisa de alguma coisa? - Diz Carlos repentinamente, me causando um leve susto.

- Não me assuste desse jeito Carlos, minha nossa. - Com uma pequena pausa respiro fundo, depois continuo - Não, obrigada. - Pensar no tédio me fez mudar de idéia - Quer dizer, preciso sim.

O homem então se vira para mim.

- O que seria?

- Consegue me trazer algo para fazer? Algum livro, carta, mapa, qualquer coisa para me distrair. Eu não aguento mais ficar sem fazer nada.

O homem ri caçoante antes de responder.

- Ah claro, quer que eu arranje alguma sereia para você conversar também?

Cerro meus olhos e ele muda de expressão.

- Vou ver se acho alguma coisa para distrair a 'milady', com licença.

Termina o guarda ironizando o apelido, se retirando do cômodo logo em seguida. Carlos gostava de implicar comigo, mas mesmo assim eu sentia que bem no fundo de seu humilde coração havia um lugar reservado para mim. Eu o admirava por conseguir ficar tanto tempo me ouvindo reclamar.

Na minha cabeça fazia anos que zarpamos de solo sul americano, mas de acordo com meu companheiro tinha apenas um dia. Bem no fim acabei perdendo minha noção de tempo pela escuridão da cabine. Tirando todos os problemas mencionados até aqui, eu até que gostava de estar navegando. A corrente que me prendia não deixava fácil olhar pela janela, mas com muito esforço era possível ver um pouco do mundo exterior.

A vista daquele pequeno espaço era limitada a algumas pequenas ondas que ficavam longe e um pedaço do céu, o que já era o suficiente para me tranquilizar. O azul harmônico do vislumbre de paisagem era puro de uma forma que me fazia sentir uma paz inexplicável. Eu amava ter aquele sentimento. Um pouco depois Carlos voltou segurando com dificuldade alguns livros escondidos em seu uniforme.

- Isso foi tudo que consegui achar, não são muito legais mas vão te distrair por um tempo.

- Qualquer coisa é melhor que nada, muito obrigada. - Abri o sorriso mais cínico que conseguia e terminei - Sempre soube que no fundo você não é tão chato quanto parece.

- Não começa. - Respondeu o loiro com uma leve expressão que me deu medo de continuar a provoca-lo. - Só estou fazendo isso porque o Loughty pediu.

- Vou fingir que acredito.

Ignorando qualquer olhar medonho caminho em sua direção até minhas correntes dizerem o limite e começo a analisar os tais objetos depois de os colocar sob a cama. Os livros em questão eram em sua maioria manuais de navegação e guias para se navegar através das estrelas, todos escritos por experiências passadas por viajantes. Era quase que diários de viagem. Em geral a descrição sob serem inúteis feita pelo guarda estava completamente errada.

Os manuscritos impecáveis e os desenhos detalhados me instigavam a lê-los. Em suas contra-capas era possível ver a assinatura de grandes navegadores, que conhecia pelas inúmeras histórias que papai me contou. Estevan amava me contar sobre a vida da maioria deles.

Eu lia os livros com muita atenção, talvez pela nostalgia de rever a história dos mais corajosos viajantes. Por causa de meu pai sempre me perguntei o motivo que levava uma pessoa a ter tal vida, afinal entregavam a maior parte de seu tempo para vaguear pelos lugares. Seus dias eram imprevisíveis e nunca sabiam se estariam vivos no dia seguinte. Confesso que minhas tentativas de entender os motivos nunca foram um sucesso.

Num ato de desatenção um livro ameaça cair de minhas mãos, e com agilidade o impesso de o fazer. O modo com que peguei o objeto fez uma de suas páginas se soltar, caindo sob a madeira do chão em seguida.
Depois de a pegar percebi ser um envelope.

"Uma carta as estrelas"

Era o que se podia ler no local do destinatário. Já no local do remetente era possível ver duas iniciais que não reconheci de lugar algum. Silenciosamente pedi ao escritor da tal carta que não me castigasse por bisbilhotar o conteúdo ali escrito.

"Setembro de 1679, Pacífico Sul.

Queridos astros celestes,
Hoje faz 38 dias que me despedi de minha antiga vida de dor. Juro não me arrepender nem um segundo sequer de ter abandonado meu passado. Talvez eu seja louco por dizer que amei navegar nas dúvidas sobre o amanhã. As águas azuis que tanto me guiaram por esse tempo foram responsáveis pelas minhas feridas cicatrizadas.
No fim, viver sob a água salgada era tudo que sempre precisei para ser feliz.
Não posso mentir que sinto falta da atenção do meu melhor amigo, quem foi e sempre será meu primeiro e único amor. Infelizmente meu amor proibido teve que ficar para trás para que hoje eu fosse o homem livre que sempre almejei ser.
Peço a vocês tão longe que num futuro não tão distante as pessoas não condenem mais umas as outras por amarem.
Nesse último momento de minha vida livro minha alma de qualquer arrependimento e entrego minha alma a essa tempestade com a certeza de ter aproveitado cada segundo que passei sob o mundo.
Para os que permanecerão respirando os desejo coragem para seguir em frente, os peço que não desistam na primeira brisa ruim que tiver, que sigam em frente como as águas do mar seguem. Se entreguem em seus sentimentos, vontades e sonhos. Este humilde homem covarde lhes pede para que não tenham medo de esconder quem são, sejam vocês mesmos.
A vida é única, passageira e curta, aproveitem cada segundo dela para fazerem aquilo que os fazem felizes, independente do que seja.
Não criem arrependimen-"

Assim como a última palavra o resto da carta estava incompleto, talvez não tenha dado tempo de a terminar afinal de contas. Chacoalhei o livro várias e várias vezes na esperança de encontrar uma possível continuação mas foi em vão. Vasculhei cada página do objeto para ver se tinha alguma pista sob o fim do dono da carta mas sem sucesso. As marcas no envelope me diziam que a carta havera sido colocada em uma garrafa para a proteger da tempestade descrita.

No fundo eu sabia exatamente o que tinha acontecido com o escritor misterioso, e por mais que suas despedidas finais tenham sido tristes eu não conseguia sentir tristeza alguma. Minha intuição dizia que os últimos dias do viajante tinham compensado seu passado de dor.

Aquelas palavras me fizeram pensar que se papai tivesse tido tempo de escrever uma carta seria exatamente como essa. Ele com certeza falaria sobre sua vida ter sido sem arrependimentos e sobre seu imenso amor por Helena. A brisa serena que entrou ela janela naquele momento me fez acreditar que de algum lugar ele tinha concordado.
No fim foi com pensamentos melancólicos, histórias sobre aventuras sob o mar e dúvidas sobre o que almejava que adormeci.

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