Capítulo 4

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CAPÍTULO 4

– Esse cara só empaca a minha vida! – resmunguei baixo sem saber para onde ir.

Ouvir a voz do meu ex-marido me irritou. Era muita chateação por causa de duas faturas atrasadas de luz que ele não foi capaz de pagar!

E o que eu tinha a ver com isso?

– A conta está no seu nome, Isis Luara.

– Zé, não moro mais nessa casa, não uso mais a água e a luz desse lugar. Se vira pra pagar isso! Me deixa trabalhar em paz!

– Sei que tem pavor só de pensar que seu nome fique sujo na praça, então estou ligando para avisar. Transfira o valor para a conta da minha mulher.

– Não vou transferir porcaria nenhuma!

Que homem folgado!

Segui em direção contrária ao rio, pois não seria prudente voltar para o barco no estado em que eu me encontrava. Bem capaz que eu descontasse toda a minha raiva no primeiro infeliz que passasse na minha frente. Por isso, continuei caminhando em direção aos casebres de madeira com passadas firmes e nervosas.

Em alguns minutos, me vi diante do lugar onde a equipe humanitária trabalhava. Havia algumas pessoas do lado de fora, a maioria crianças e gestantes. Presenciar aquela pequena algazarra me trouxe um bocado de calma.

Avistei Grayce Kelly, a enfermeira, se despedindo de um garotinho banguelo enquanto eu me aproximava.

– Boa tarde, Capitã Isis. – O sotaque carregado deixou sua saudação um pouco engraçada.

– Boa tarde, Grayce. – Devolvi o cumprimento notando que em uma de suas mãos havia um ouriço cheio de castanha-do-pará. Sorri e falei: – Mal chegou e já está ganhando presentes.

– Não. Não é para mim não. O guri disse que precisa ser entregue ao doutor Gustavo. – Ela deu uma risadinha, e como que cochichando, falou: – Ele sempre é o preferido de todos. Tanto das crianças quantos das mães.

O médico metido a Indiana Jones era carismático. Isso não dava para negar. Entretanto, com um pouco de altivez, perguntei:

– E será que o doutor sabe como abrir este ouriço de castanha?

– Têm castanhas aqui dentro? – ela perguntou sacudindo o fruto numa divertida expressão de surpresa. – É daqui que as castanhas vêm? Cada cumbuca desta vem com quantas?

Meu sorriso se alargou com sua simplicidade.

– Se quebrar essa cumbuca, vai encontrar as castanhas que você conhece. A quantidade varia entre 10 e 30 castanhas, dependendo do tamanho do ouriço.

Bah! Isso é fabuloso! – não era de se estranhar que uma pessoa urbana como ela não soubesse de onde as castanhas vinham, afinal, a probabilidade de eles verem um ouriço do fruto nas cidades do sul era praticamente nula.

– Tecnicamente, não são castanhas, são sementes... – meu comentário saiu de forma distraída, pois meus olhos estavam atentos em um divertido tumulto que acontecia há poucos metros.

Gustavo exibia seu domínio sobre a bola enquanto fazia embaixadinhas para um grupo de crianças. Seu jeito cativava os pequenos, que sorriam e vibravam com seu desempenho. O que era incrível, já que as crianças ribeirinhas são muito desconfiadas quanto pessoas estranhas se aproximam.

Bonito, acessível, carismático e gosta de crianças.... Sorte da mulher que casar com ele., foi inevitável não ter esse pensamento.

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– ... espécie nativa da região amazônica, esta palmeira é conhecida popularmente por nomes como pupunheira ou pupunha-verde-amarela. De onde se aproveitam diversos aspectos: frutos e palmito como alimento; palhas em cestaria e em cobertura de habitações; flores como tempero; estipe em artesanato e construções; e as amêndoas para extração de óleo. Pode crescer até 20 metros, frutificando grandes cachos num tempo de plantio de cinco anos em condições naturais, reduzindo à metade o tempo em condições especiais de cultivo. – Expliquei para o grupo humanitário.

Seu Dignatário tinha nos convidado para conhecer a plantação de pupunhas que cultivava com a ajuda dos oito filhos. A tarde estava quente, um calor abafado e úmido. Ainda que a trilha estivesse limpa, levei meu facão, até porque eu adorava palmito, especialmente fresco.

– A capitã parece agente de turismo, sempre explicando tudo. – Valentina comentou bem-humorada e prosseguiu: – À direta vemos samambaias e orquídeas, à esquerda cipós e... cobra! – a última palavra saiu gritada, deixando todos em alerta. Aos berros, Grayce Kelly pulou no colo de Herculano, um dos técnicos de laboratório. A salamanta estava enrolada num galho. Não havia necessidade, mas para acabar com a gritaria das mulheres, usei o facão e decepei a cabeça do réptil.

– Que coragem, capitã! – Grayce Kelly desceu docolo de Herculano.

– Não foi nada. A Salamanta não é peçonhenta. – Com a lâmina do facão, peguei o cadáver pendurando-o num galho de uma árvore.

– Então por que matou? – A pergunta de Herculano me tornou ainda mais o centro das atenções.

– Pra acabar com a gritaria, além disso, o couro dela vai render um bom dinheiro pra vila e a carne pode alimentar algumas bocas. – Falei já e segui meu caminho.

Não demorou para chegarmos à plantação de pupunhas, no qual se localizava num terreno atrás da vila. Um dos filhos de seu Dignatário nos mostrou como que se retirava o palmito de dentro de uma palmeira jovem. Ele a cortou em pedaços e distribuiu. Aproveitei que o grupo estava distraído para colher palmito de três palmeiras, eu tinha certeza que as meninas da cozinha iriam adorar.

– Tu manejas bem o facão. – Gustavo sentou por perto, me observando abrir a palmeira.

– Nas minhas condições, preciso saber usar algumas ferramentas.

– Sempre viveu aqui no Norte?

– Sempre.

– Entre Cruzeiro do Sul e as comunidades ribeirinhas?

– Aham.

– Já teve vontade de viver numa cidade maior? Digo, mais urbana?

– Quando era jovem e deslumbrada, sonhei morar em São Paulo. Até cheguei a visitar a cidade algumas vezes. Mas o tempo passou e entendi que minha realidade é aqui.

– Tu combinas com esta paisagem. – Disse reflexivo, e eu fiquei encabulada, como de costume.

Por sorte, Guilherme nos chamou para voltarmos a vila ribeirinha. Ainda havia algumas consultas a serem realizadas naquele turno. Como a comunidade era razoavelmente grande, ficaríamos dois dias atracados para conseguir atender toda a população.

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OBS: Amo o Norte do Brasil. A maioria das fotos que postarei aqui, foram tiradas por mim ou pelo meu marido em nossas viagens a Floresta Amazônica. Eu ainda não conheço o rio Juruá, somente o meu marido conhece. Mas já naveguei cinco rios da floresta (Solimões, Negro, Madeira, Teles Pires e Cristalino). Destes, o rio Madeira e Solimões são os que mais se assemelham ao Juruá. A diferença é que o Juruá possui o percurso mais tortuoso de toda a floresta.

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Livro escrito em parceria com Daiane_Gomes97

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