Capítulo 14

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Capítulo 14

Amanheceu e logo atracaríamos na vila de Tamiquá. Há poucas horas tínhamos saído do Juruá e entrado nas águas do Amazonas. A grandeza deste novo rio era imponente, semelhante a beleza e infinitude dos mares. Isso nos dava um pouco mais de segurança, pois se houvesse algum outro ataque vindo das margens, estaríamos parcialmente distantes.

Essa mudança de ambiente ajudou acalmar os ânimos. Durante a madrugada, alguns membros da equipe humanitária perguntaram sobre o ocorrido. Apesar dos meus funcionários terem entendido que foi um recado de Liberato para mim, suas repostas à equipe foram simples: piratas.

Como eu tinha passado a noite em claro, me entupi de café. Enquanto eu ajudava Miguel a juntar os vidros estilhaçados com uma pá, meu telefone tocou. Saí da cabine ciente de quem me chamava do outro lado da linha.

— Bom dia, indiazinha. — A voz rouca e debochada me causou ojeriza.

A minha vontade era de mandá-lo as cucuias, dizer tudo que eu realmente pensava sobre ele, mas meu bom senso era maior. Seria leviano dar lugar a atitudes impensadas com tantas pessoas sob minha reponsabilidade. Meus funcionários e clientes já estavam sofrendo as consequências da minha teimosia.

Então, engolindo o meu orgulho, falei:

— O dinheiro estará na sua conta ainda hoje. Agora, me deixa trabalhar em paz. Tchau. — Eu já estava pronta para encerrar a chamada.

Mas ele foi mais rápido:

— Ei, espera um pouco, Ísis Luara! Não se despeça ainda, meu bem.

— Fala logo, seu maldito.

ficando desbocada, capitã. — Ele riu. — Parece que a lição de ontem não foi o suficiente para abaixar a sua bola.

— Até onde sei, quem saiu em desvantagem foi o senhor. Afinal, agora têm três capangas a menos.

— É sobre isso que quero falar. — Ele fez uma breve pausa. — Um deles está desaparecido, provavelmente deve estar morto. Mas os outros dois estão no hospital, ou seja, estão me dando gastos. Seria mais fácil se vocês e seus funcionários tivessem matado estes incompetentes. — Ouvi sua risada e arrepiei diante da sua frieza. — Mas, como sou bom com você, não faça a transferência hoje. Receberei minha quantia quando o Vitória Régia atracar no porto de Manaus, porém com juros.

— Desgraçado...

— Agora sim podemos nos despedir. Nos falamos em breve, indiazinha. — E assim, encerrou a chamada.

*****

Meu corpo estava exausto, mas eu não queria me deitar no meio do dia. Também não tinha apetite. Então para despertar, resolvi tomar um banho frio. O choque do meu corpo quente contra água me ajudaria a segurar as pontas por algumas horas. Enrolada numa toalha, olhei minha imagem abatida no pequeno espelho do banheiro. As olheiras em minha pele morena estavam roxas. Nunca desejei tanto o anoitecer.

Abri a porta e dei de cara com Gustavo sentado na minha cama.

— Como você está? — perguntou preocupado.

— Cansada. — Respondi, passando por ele e abrindo a porta do meu armário. — E não quero conversar sobre o que aconteceu.

— Tudo bem. Vim aqui só pra te ver. — Sua voz soou carinhosa, mas continuei em silêncio escolhendo uma roupa. — Hoje eu falei por telefone com um amigo fazendeiro. Na verdade, Franco é um grande empresário do agronegócio. Suas terras produzem grãos e uma pequena parte, cria carneiros. Ele está contratando, precisando de gente para trabalhar na área de gerenciamento de produção. Mencionei tu. — Ele parou de falar por alguns segundos. — Se for do teu agrado, Ísis, se tiver algum interesse, converse com ele.

Puxei uma longa respiração sem entender o que se acontecia comigo. Tive vontade de chorar, bem como agradecer a Gustavo por se preocupar e, ao mesmo tempo, xingá-lo pela marca de batom que avistei em sua camisa, depois do tiroteio.

Que loucura! Eu estava virando o tipo de mulher que por anos caçoei sem o mínimo de compaixão!

Obviamente a atitude que tomei na sequência, foi a comprovação de que eu não estava certa da cabeça. Virei de costa para o armário e de frente para ele, e perguntei:

— Você tem transado com a Valentina? — ele levantou as sobrancelhas como se eu fosse uma pessoa que não fizesse sentido. Continuei: — Ontem à noite, antes dos capangas do Liberato tentarem nos atacar, você estava com ela, não estava?

— Estava, mas não do jeito que está pensando. — Respondeu seguro e eu não sabia discernir se seu comportamento era verdadeiro. A presumir o pouco que eu o conhecia, me levava a crer que sim.

— Havia marca de batom na sua camisa, a mesma cor que a doutora estava usando. — Tive vontade de abaixar a cabeça por agir com tamanha insegurança, mas a mantive erguida. Se fosse para passar vergonha, que fosse sem autopiedade e acanhamento. — A não ser que, quando você teve de arrastá-la para o dormitório durante o tiroteio, a boca dela esbarrou na sua roupa. Mas a doutora estava muito arrumada, bonita demais para dormir, o que me leva a crer que ela...

— Ela tentou algo, mas eu disse não. — Falou direto, me interrompendo.

— Mas vocês já tiveram algo? Digo, antes da gente...

— Não, Ísis.

— Ok. — Conformada, voltei a ficar de frente para meu armário.

— E quanto ao emprego nas fazendas do Franco? — senti uma ponta de expectativa em sua pergunta. — Tem algo a dizer?

— Se essa oportunidade tivesse aparecido alguns anos atrás, eu não pensaria duas vezes antes de aceitar. Mas eu preciso... eu preciso fazer uma lista de prós e contras. Seria uma mudança muito drástica. Não sei se é prudente recomeçar com quase trinta e cinco anos, entende?

— Fiquei viúvo com a tua idade e tive que recomeçar.

— Mas o que te aconteceu foi um infortúnio. Você não provocou sua viuvez. Já o meu caso significa sair da zona de conforto.

— O que quero dizer que nunca é tarde para novos começos, capitã. — A brandura de sua voz fazia parecer fácil a ideia deixar tudo para tentar a sorte num novo lugar. — As fazendas ficam próximas a São Leopoldo, a cidade onde moro. Eu gostaria muito de tê-la por perto, na verdade, tê-la em minha vida.

Ao ouvir a última frase, senti algo gostoso se contorcer em meu ventre.

— Vou pensar, pode ser?

— Claro. Meu amigonão demonstrou ter pressa em preencher a vaga. Bem, meu horário de almoçoterminou, hora de voltar a reunião. Guilherme está remanejando os expedientes antesde chegarmos na próxima vila. — Com um sorriso bonito, ele levantou e veio até mim. Suas mãos seguraram a minha nuca, em seguida, roçou nossos lábios antes de me beijar com paixão. Ao terminar, deu um passo para trás e disse: — Só não demora muito para dizer sim, capitã.

Ele me lançou uma piscadela e se retirou do quarto.

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Nos Labirintos da Selva foi escrito em co-autoria com a autora Daiane_Gomes97

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