Capítulo 1

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Ísis Mattos

Enchi as mãos com a água fria que saía da torneira e molhei o rosto. Depois olhei para a pequena janela. Lá fora, a fina camada de neblina pairava sobre as águas do rio Juruá.

Suspirei.

Fazia quatro meses que Zé Afonso tinha me deixado.

Pensei que estávamos bem, financeiramente as coisas se encontravam melhores para nós. Já não morávamos num casebre como no início do nosso casamento. Tínhamos o nosso canto, um tanto modesto, mas era nosso. Havia um jardim bonito, cozinha, copa, dois quartos e até uma churrasqueira de tijolinhos. Mesmo assim, ele me deixou. Um dia simplesmente acordou, se vestiu para o trabalho e, bebericando o café, disse que não me amava mais. Me descartou como se fosse um guardanapo sujo.

O sentimento de incompetência como esposa me tomou, já que um dia antes tínhamos feito amor na cabine do meu barco, ou melhor, eu fiz amor, ele fez sexo. Gozou, se retirou de dentro de mim, levantou a calças e saiu para fumar. Não recebi carícias pós-coito, não ouvi seus costumeiros elogios. Apenas fui deixada com a prova do seu prazer escorrendo em minhas coxas. Permaneci quieta por alguns minutos, reprimindo as lágrimas que insistiam em cair e negando a mim mesma que algo estava errado.

Na verdade, tudo estava errado porque ele me deixou! Jogou nossa história no lixo.

Lembro que ele terminou de tomar o café da manhã, juntou algumas roupas numa pequena bolsa de viagem, e antes de fechar a porta perguntei se havia outra mulher.

– Não. Não existe outra. Estou fazendo isso por mim.

Ele mentia.

Um bolo se formou em minha garganta.

Zé sempre conseguia mentir olhando nos olhos.

Ele disse que não havia outra, mas sempre existe. Nenhum homem larga a estabilidade simplesmente para se redescobrir. Homens largam suas mulheres quando se encantam por outra.

A prova disso veio rápido. Claudete era quinze anos mais nova do que eu. Filha de um dos meus marinheiros. A jovem sempre se mostrou encantada com o meu barco, com minha casa, e pelo visto, com o meu marido também. Dos três ela ficou com dois.

Depois de um mês longe de casa, Zé me fez uma visita nada agradável. Me pediu a casa. Sua nova mulher estava grávida.

– A gente vai precisar de espaço para criar o bebê. Você não necessita de uma casa com dois quartos, tem o seu barco. Pode morar nele, já que passa mais tempo lá mesmo.

Casados com divisão de bens, saí da minha casinha e fui morar no Vitória Régia. Me instalei na maior cabine e abasteci o frigobar. Mergulhei no trabalho feito louca apenas para não pensar demais no que aconteceu. Mas à noite, a solidão visitava a minha cama, e em silêncio as lágrimas confirmavam a minha angústia.

As pessoas passaram a me olhar com pena e a desprezar Claudete. Sempre achei o senso de justiça dos humanos um tanto singular. Em Cruzeiro do Sul, por exemplo, as pessoas começaram a hostilizar a amante grávida do meu ex-marido, mas ironicamente estavam sempre baixando a crista para o seu Liberato.

Pensar nesse homem me deu calafrios.

Enxuguei o rosto na toalha lilás, deixando o passado e focando no presente.

Em algumas horas minha tripulação receberia uma expedição humanitária. A viagem duraria um mês. Subiríamos o rio Juruá e entraríamos no rio Amazonas com destino a Manaus. Durante o percurso pararíamos nas comunidades ribeirinhas para que o grupo pudesse fazer o seu trabalho. Infelizmente os meus lucros com essa viagem eram poucos. Seu Liberato fazia jus ao coronelismo e, ao contrário da população de Cruzeiro do Sul, não teve pena da pobre capitã enxotada de casa pelo marido adúltero.

Besuntei minha pele com repelente, coloquei meu precioso canivete no suporte amarrado na coxa e o revólver de oito balas escondido no cós do short. Amarrei o cabelo em um rabo de cavalo alto e posicionei um único brinco de penas coloridas na orelha esquerda, uma lembrança da minha origem indígena.

Era hora de começar a trabalhar, pois, eu tinha uma longa jornada pela frente, além de contas para pagar.

Assim que saí da cabine, vi meus homens carregando o barco com suprimentos para a viagem.

– Bom dia, capitã.

– Bom dia. Todos estão prontos para zarpar? – parei ao lado de Jairo, sobre a segunda tábua que servia como andaime entre o barco e o nosso precário porto.

– Quase. Seu Jorge foi buscar o grupo no aeroporto. Já devem estar chegando aí.

– Tudo bem. Leve as frutas para a cozinha. Dona Valdete está esperando para o café da manhã.

– Ok, capitã. Só vou ponhar isso lá na dispensa e já levo. – Jairo, o marinheiro mais jovem do Vitória Régia, sorriu. Ele tinha vindo substituir o pai que se aposentou. Era um bom rapaz, sempre prestativo e bem-disposto.

Desci do barco e observei o movimento do porto, apesar de não ser grande, havia uma boa movimentação de barcos e balsas. Um pouco mais distante, avistei os pescadores venderem seus peixes numa algazarra divertida.

A buzina do jipe me chamou a atenção. Cruzei os braços e pus-me a encarar a turma que se aproximava.

– Bom dia. Desculpe a demora, capitã. O pessoal tem muita bagagem. – Seu Jorge desceu e começou a pegar as malas.

– Tudo bem, mas se apresse, tenho horário. – Falei olhando para o grupo de seis pessoas. Quatro homens e duas mulheres, todos de pele bem claras. Alguns tão brancos que poderiam ser vistos de longe.

Então dois homens se aproximaram.

– Bom dia. A senhora deve ser a capitã Ísis. Sou o Dr. Guilherme Schultz e esse é meu parceiro, Dr. Gustavo Schmidt... – O tal Guilherme continuou a falar, mas eu mal o escutei.

Tudo por causa de certo par de olhos.

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Este livro está sendo escrito em parceria com a autora Daiane_Gomes97

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