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Três meses depois

Esse é definitivamente, o pior cheiro que já senti em toda a minha vida. Me vejo parada em meio ao saguão que não era grande o suficiente para acomodar todos os feridos, que já começam a se amontoar pelo chão assim como o número de mortos, que só aumenta. A atmosfera caótica está impregnada com o odor fétido do sangue que se misturava ao suor e a sujeira das pessoas, dos soldados que chegam para nós abatidos, os olhares perdidos no próprio desespero diante de seus membros faltando e ferimentos expostos.

De súbito, volto a caminhar em direção ao homem que ajudava antes. Me lembro dele quando aperto involuntariamente o cinto em minhas mãos. Sinto o couro entre meus dedos e ando o mais rápido que posso, desviando dos enfermeiros apressados que passam por mim e das pessoas que estavam no chão. Engulo a seco quando abro a cortina branca manchada de sangue ao redor da maca onde jazia o homem com a perna esmagada do joelho para baixo. Me esforço para não olhar para o monte de carne e fragmentos de ossos que havia virado seu membro inferior enquanto prendo o cinto acima de seu joelho, o mais apertado que consigo. Já é o sexto torniquete em alguns minutos.

O homem solta um grunhido alto e tenta erguer a cabeça numa tentativa de checar o ferimento em sua perna. Angela põe uma das mãos sobre a testa dele o impedindo de levantar. A mulher sorri de leve para ele e lhe diz que ele precisa ficar deitado.

Como ela consegue ficar tão calma?

- Preciso que vocês o segurem. - Angela diz, enluvando as mãos tomando nelas o instrumento prateado que fez com que eu arregalasse os olhos.

- Você vai... - Dou um curto passo para trás. - Angela!

- O que você sugere, Amarie? - Ela responde, visivelmente irritada. - Estamos no meio de um campo de batalha, esses soldados não vão parar de chegar tão cedo. Ou ele perde a perna ou ele não volta para casa.

Sou interrompida antes mesmo de responder pela mulher que acaba de abrir a cortina, ofegante. Ela Tem o semblante assustado, os fios de cabelo caem sobre sua testa e ela os afasta quando consegue finalmente falar:

- Precisamos de uma de vocês duas. - Ela faz uma pausa para inspirar. - O homem está num estado deplorável, não sei o que fazer com ele. - Ela olha em minha direção. - Por favor.

Meu inconsciente grita para que eu não vá, para que permaneça exatamente onde eu estou imóvel. Entretanto o aceno de cabeça de Angela ordenando que eu saia faz meus pés se mexerem para fora, correndo atrás da enfermeira que ia na frente, tentando não a perder de vista enquanto ergo as mangas do jaleco até os cotovelos. O calor faz com que eu sinta algumas gotículas de suor em minha testa e alguns fios de cabelo grudam sobre elas, assim como em minha nuca. Ignoro aquela sensação e afasto os pensamentos de água gelada caindo sobre a minha cabeça quando os gritos chegam aos meus ouvidos.

Aquilo era como ouvir centenas de unhas arranharem um quadro negro simultaneamente, bem devagar. A sensação de mal-estar e agonia se espalha pelo meu corpo quando finalmente chego à origem daqueles gritos tão desesperados. Engulo a seco e sinto minha boca se encher de saliva, a náusea e o revirar do pouco de comida que ingeri em meu estômago se fazendo presentes. O gosto amargo se espalha enquanto me abaixo ao lado do homem dilacerado, que é colocado no chão em uma maca improvisada com tecido e pedaços de madeira. Tento imaginar o que eles estariam passando nas trincheiras enquanto observo o que havia sobrado de seu uniforme, buscando por um nome.

O homem tem um dos braços amputados, as faixas brancas que o envolvem tingidas quase em sua totalidade em vermelho pelo seu sangue, assim como uma de suas pernas. O outro braço está curvado sobre o abdômen e hesito antes de o afastar para ter uma melhor visão de seu tronco. A enfermeira apreensiva ao meu lado estica para mim com as mãos trêmulas uma tesoura. Corto o tecido bege do uniforme do soldado e o afasto de sua pele, sentindo mais do que antes, vontade de vomitar. Qualquer que tenha sido a arma que o feriu daquela forma, atingiu boa parte de seu tronco, especialmente acima do umbigo, onde a carne dilacerada revelava por uma fresta seu intestino, movimentando-se com calma enquanto o restante do corpo brigava alucinado para se manter vivo.

Lionheart I Erwin SmithOnde histórias criam vida. Descubra agora